Historias e estorias que não foram contadas

Historias e estorias que não foram contadas
uma foto, de um passado distante

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Os aventureiros da Serra do Gafanhoto. Fasc. 079/80.


"Vivemos em um mundo maravilhoso que é cheio de beleza, encantos e aventuras. Não existe fim para as aventuras que podemos ter se simplesmente as procurarmos com os nossos olhos abertos."
 (Jawaharial Nehru)

Os aventureiros da Serra do Gafanhoto. Fasc. 079.

Parte I

            - Olhe, você sabe, conheci centenas ou milhares de chefes. Aqui já contei para você muitos deles que passaram pela minha vida. – O "Velho" Escoteiro naquele domingo a tarde estava loquaz. Primeiro deu belas risadas quando comentei sobre um Chefe meu amigo que apesar de debruçarem no processo que faziam para ele fazer jus a uma condecoração ele foi rejeitado. Incrível. Já estava com doze anos de atividade Escoteira, mas os processos iam e vinham. O "Velho" me olhou e disse – Desisti de lutar contra a maré. Estes dirigentes a cada um novo que aparece se julgam “Deus”. Ditam normas, fazem as leis e se julgam donos da verdade. Minha idade continuou, não permite ficar mais fazendo críticas. Eles são o que são nada vai mudar. Já te disse àquela quadrinha que um dia fiz:

- “Deixe de lado esta mania de grandeza”.
Faça seu trabalho, com poucos, mas com certeza.
Este jogo é como pedra de moinho e,
Se bem aplicado só terás alegria e não tristeza!”

                  - Mas não vamos falar sobre isto. Hoje vamos falar de escotismo puro, escotismo nas veias, não este arremedo que fazem por aí com medo de tudo. De pais que querem mandar, de atividades que não passam de um camping piorado. Isto já virou rotina. Sempre dizendo que os tempos são outros e o perigo mora ao lado. Hoje vamos falar de grandes escoteiros, de grandes chefes. Conheci muitos e acordei lembrando-se Do Chefe Tony Lantras. Acho que em suas veias nasceu para ser um Escoteiro/aventureiro. Sempre foi. Na sua Patrulha quando jovem era um contestador. Queria que os patrulheiros fossem iguais a ele e não se entregassem a rotina das reuniões e das atividades no campo. Foi ele que me transformou em um Escoteiro aventureiro. Saiamos da escola e sempre lá estávamos a explorar o desconhecido. Poderia ser os fundos da Fabrica de Trator que dava para uma pequena mata, poderia ser na caverna da onça na beira do rio e os olhos deles piscavam como se ali fosse um local nunca antes explorado.

                  - Quando passou para Sênior quase foi mandado embora da tropa. Claro ele tentou fazer mudanças nas reuniões e atividades afins, tentou também no conselho da tropa Sênior e da Corte de Honra e nada conseguiu. – Precisamos, dizia ele, sair desta rotina. Precisamos colocar o pé na estrada. Apertar o chapéu na cabeça. Uma bandeira a tremular. Buscar novas florestas, novas campinas, novos vales, subir ou descer um rio, explorar minas abandonadas, escalar picos que nunca fomos. Amigos são tantas coisas! Mas não. Não o entenderam. Ainda bem que fez grande amizade com Nissinho, Monitor da Antares. Um seu fiel seguidor. Por muito tempo esteve ao seu lado até que um dia disse que ia tentar a sorte nas minas de ouro de Serra Pelada e nunca mais apareceu. Enquanto pude eu o acompanhei em muitos lugares que até hoje trago boas recordações. Quando passou para Pioneiro achou que ali teria muitos companheiros de aventura. Mal conseguiu que uns poucos programassem uma viagem no rio Xingu. – Viagem mixuruca, disse ele. A turma só queria paquera! Pode isto?

                     - Eu depois dos dezesseis anos pouco podia acompanhá-lo. Papai começou a sofrer uma paralisia nas pernas e dependia de mim para ficar ao lado dele no escritório. Ele poderia ter delegado a um dos funcionários, pois alem dele tinha mais cinco engenheiros com ele. Achou que eu devia conhecer e aprender e assim só estando presente. Aos dezoito anos entrei para a faculdade de engenharia e isto foi sua alegria até o dia que foi para outras plagas outros planetas no céu. Assumi e aproveitei para ir a muitos encontros e atividades nacionais e internacionais. Fiz amigos na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos e o Jamil de Nagpur da Índia, que até hoje me escreve ou telefona. Mas olhe, eu e o Chefe Tony Lantras não éramos tão chegados. Ele frequentemente sumia e demorava meses para voltar. Lembro que teve casos de ficar fora cinco anos. Deste me lembro de bem.

                    - Sempre me dizia que iria fazer a velha trilha de BP quando foi parar em Mafeking na África do Sul. Eu sei que esteve em muitos lugares. Seu espírito aventureiro não cessava. Quando fez dezoito anos me disse que estava apaixonado pela Pioneira Larissa. Eu a conhecia. Linda. Olhos negros brilhantes, morena clara, educadíssima. Sua vida pregressa como Bandeirante tinha formado além de uma bela moça toda a noção da lei Escoteira do "Velho" Baden Powell. Não durou muito. Ela não queria acompanhá-lo naquelas aventuras fantásticas. Quando ele contava seus olhos piscavam e ela o adorava não só pelo que era, mas pelas conquistas dos seus sonhos. Mas nada, além disto.

                     - Ainda ontem ele passou por aqui. Vi uns olhos cansados, um corpo alquebrado e um sentimento de ter conseguido e ao mesmo tempo ter perdido tudo com sua velhice. Já não era mais o mesmo. Quase da minha idade. Não casou. Ele fez tudo para Larissa o acompanhar. Ela hoje eu sei que casou com o Doutor Nando e dizem que vivem felizes com o casal de filhos que têm em Brasília. Conversamos por horas. Nunca me contou como vivia, pois viajando pelo Brasil inteiro e para o exterior como fazia para pagar as despesas. Soube que uma rede de TV o pagava pelas filmagens e histórias que escrevia. Uma noite que nunca esqueci contou-me belas historias sua no Nepal. Quem diria. Estávamos juntos acampados no Cabo das Agulhas, bem ao extremo sul do continente africano, pois nos disseram que ali os Oceanos Índico e Atlântico se dividiam formando a famosa Corrente de Benguela. Dizem também que era a rota mais perigosa. A Rota dos Clippers. Não vimos nada disto, mas as belas paisagens compensou sem sombra de duvida a viagem.

                      - Lembrei-me também de quando juntos estávamos a viajar a cavalo pelas planícies de Oklahoma nos Estados Unidos e ele rindo fazia biquinho com seus lábios finos para me explicar – “Sua pronuncia do nome do estado é péssima. Diga Okla-homa. É a língua Choctaw. Okla – gente – humma – vermelha”. Peles-Vermelhas. E ele ria. Era assim continuou que se chamava esta região quando os índios vieram habitá-la. Foi uma aventura e tanto. Ficamos mais de um mês para atravessarmos uma porção de terra de pouco mais de quinhentos quilômetros. Uma terra vermelha, argila vermelha até onde a vista poderia alcançar. O por do sol parecia refletir a vermelhidão do panorama e às vezes os nossos olhos nos enganavam, pois tudo transformava em escarlate. Tens sede? Tens fome? Estás cansado? E Tony Lantras ria de montão. – Faça como Moisés quando o Anjo lhe disse: “Venha cá para este trono e coma se tem fome, e beba se está de boca seca, e descanse se os seus pés estiverem doente”.

                    - Ah! Meu amigo Tony Lantras. Eu falava com ele e ele aí sentado, cochilando e de vez em quando dava um ronco de assustar um touro. Chamei-o para descansar no quarto de hóspedes. Não quis. Abriu os olhos e me encarou. - Já contei a você minha aventura na Serra do Gafanhoto? Não? Pois então se prepare. E olhe, se me chamar de sonhador eu vou rir muito. Mas posso dizer a você, palavra de Escoteiro que tudo aconteceu. E como aconteceu. Tudo começou quando um homem barbudo, sujo, que nunca tinha visto me pediu um trocado na esquina da Rua do Ouvidor com a Praça João Mendes. Não neguei. Não costumo julgar. Que ele faça bom proveito. Dei a ele logo uma nota de vinte reais. Não ia fazer falta para mim, mas ao olhar os seus olhos vi que ia fazer o dia dele muito feliz. Tirou do bolso um pedaço de couro fino marrom, com desenhos diversos que deduzi ser um mapa feito por um amador.

                    - Tome – disse. Você é uma alma boa. Merece. – O que é isto? Perguntei. – Suba a Serra do Gafanhoto. Procure na parte leste uma cabana de madeira. Lá se não estiver aguarde a chegada de Thor Heyerdahl. Dizem que tem mais de mil anos. Ele chega sempre embalado por uma nuvem cinzenta. Não precisa ter medo. Não acreditei, mas sei que tais tipos têm histórias fantásticas. – E ele continuou - Dizem que quando os conquistadores espanhóis estiveram aqui, levados, talvez por algum índio capturado e ansioso por voltar ao sua tribo, fazia falsas promessas de montanhas cheias de ouro e esmeraldas. Um dos capitães resolveu achar sozinho o ouro. Subiu a Serra do Gafanhoto numa época de muito frio. Sumiu. Ninguém nunca mais o viu. Eu o encontrei lá. Decrépito quase morto. O alimentei. Eu era na época um caçador. A caça sumiu. Não sabia fazer outra coisa. Voltei à cidade. Ele me deu este mapa. Disse que era confiável. Que eu poderia ficar rico se achasse a Trilha dos Conquistadores Espanhóis.

                - Olhei para o Chefe Tony Lantras pensando que ele já estava entrando na fase do que foi e do que não foi. Os velhos fazem muito isto. Aumentam, contam histórias fantásticas, mas não deixá-los contar é como se cortássemos sua língua, tirássemos o prazer dele em viver o que não viveu. Sou um "Velho" e você sabe disto. Sempre pisei com os pés no chão. Mas quem sabe eu não poderia ficar como ele? – Incentivei-o a continuar. – Estava eu interessadíssimo no que o "Velho" me contava. Sua maneira, seu estilo, sua voz mostrava o poder de uma história em sua mente. Mas graças a Deus a Vovó adentrou na sala com seu carrinho de lanches que todas as noites fazia questão de nos presentear. Sempre com seus deliciosos biscoitos de polvilho, pães de queijo quentinhos, aqueles bolos deliciosos, um café fumegante ou um chocolate quente no ponto. Comia pensando na história contada pelo "Velho" escoteiro. Mais um domingo cheio. Melhor que ver TV e ir ao cinema. Risos. Claro dizem por aí. Isto é programa de índio. Mas qual Escoteiro não é meio índio e gosta de uma boa história?
  
Os aventureiros da Serra do Gafanhoto. Fasc. 080.

Parte II

                   Olhei no relógio de parede da Sala Grande. Sete e meia da noite. Cedo ainda. Tinha dias que saia da casa do "Velho" Escoteiro depois de duas da manhã. Segunda feira brava. Mas e daí? A companhia do "Velho" Escoteiro valia muito mais. "Velho", conte-me, o que aconteceu ao Chefe Tony Lantras? – O "Velho" riu. – Calma. Vou chegar lá. O "Velho" suspirou. Fez um gesto como se fosse acender seu cachimbo. Esqueceu que largou há mais de cinco anos. Praguejou. Eu sabia o que dizia. Maldizia o Doutor Nonô que o proibiu de fumar. Trocou de posição, colocou um pé em cima da poltrona, me olhou e continuou – O Chefe Tony Lantras começou a planejar a subida na Serra do Gafanhoto. No início nem sabia onde ela estava. Na biblioteca da cidade (ainda não havia internet) ele descobriu. Ficava próxima a Oiapoque no Amapá. Parte brasileira e outra da Guiana Francesa. Atravessando o Rio Oiapoque já tem o inicio da subida. Do outro lado ficava Saint-George de L’oyapock.

                    - Assim ele começou a contar sua história. Deixe-o falar. Só transmito o que me disse: – "Velho", tentei alguém para ir comigo. Você sabe não gasto muito. Sou um escoteiro caroneiro. Nissinho já havia zarpado para Serra Pelada. Dos pioneiros que ainda viviam na cidade ninguém topou. Preparava-me para ir só. Uma surpresa aconteceu. À noite bateram a porta da minha casa. Abri e lá estava Larissa. Linda como sempre. Entrou sentou e disse da sua decepção e porque o tinha procurado. Terminara seu noivado. Coração partido. Estava triste. Achou que era o homem da sua vida. Não era. Precisava mudar de ares. Precisava esquecer. – Quero ir com você! Posso? – Fiquei boquiaberto. Não esperava isto. Porque não? Pensei. Expliquei a ela tudo. Disse dos perigos que poderíamos correr.  Nem pestanejou. Aceitou de pronto. Assim foi feito, assim foi escrito, assim foi combinado sem protocolo e o dia chegou. Mochilas as costas e lá estávamos nós na estrada BR156 do Oiapoque pedindo carona. Em três dias chegamos a Macapá. Em Pernambuco conseguimos uma carona em um avião da FAB. De lá até o Rio Oiapoque foram quase seiscentos quilômetros de carona e na Empresa Viação Vulcabrás. Risos. Nossas botinas. Você conhece.

                       - O barqueiro tinha cara de poucos amigos. Não queria conversa. Não nos deu nenhum detalhe. – Olhe, no pé da serra tem uma senhora. Dona Chiquitita. Dizem ser feiticeira. Dela quero distância. Procurem ela. Ela sabe. Ela conhece os mistérios daquela serra maldita. E mais não disse. Dito e feito. Andamos uns oito quilômetros e avistamos sua tapera. Ela estava na porta fumando um cigarro de palha. Nem bem chegamos e ela começou a rir. Tinha só um dente na frente. Lembrei-me da bruxa de Branca de Neve. Ela parou de rir, esticou o pescoço na minha direção – Quer morrer? Falou. E você moça também? – Porque dona? – Ora vocês não vão mexer com os mortos? Aonde vão só tem fantasmas! Olhei para Larissa. Ela estava de olhos arregalados. Virou para mim e disse – Pé na estrada Tony Lantras. Se estiver com medo esconda atrás de mim! E riu a valer. Mas vi que era um riso nervoso. Como sabe disto Dona? – Vejo nos seus olhos. Vejo no seu corpo, você carrega na mochila a morte. Ele veio da serra e quando volta quem estiver de posse dele presta contas com o diabo! – Só podia ser o mapa. Só podia ser. 

                          - Pedimos se podíamos passar a noite em sua tapera. Qualquer canto serviria. Ela deu de ombros e entrou. Entramos atrás. Um salão sem divisórias. Mesa simples, dois bancos, uma cama de madeira comum forrada com folhas secas. Um fogão de lenha. Latões panelas tudo amarrado e pendurado com cipó. Ficamos em um canto. Ela perguntou se já teríamos jantado. Não, dissemos. Pegou um feijão preto pegajoso e gorduroso e já cozido, jogou em uma panela de ferro depois de reacender o fogo. Misturou farinha de mandioca torrada e alguns grãos de pimenta malagueta. Tirou de uma lata dois pedaços de choriços salgados. "Velho" Escoteiro, meu amigo, eu comi feito um danado. Larissa arregalou os olhos, mas não deixou nem um feijãozinho no fundo do prato. Em um riacho próximo tomamos um banho e o lusco fusco da noite chegou. Olhamos para a Serra do Gafanhoto. Imponente. Linda. Um barulho como se fossem correntes enormes se arrastando vinha bem do alto da serra. A serra parecia tremer! Nunca tinha visto nada igual. 

                             Bom sinal eu pensei. Ou encantada ou enfeitiçada ou do demônio. Do jeito que sempre gostei. Você sabe dito meu amigo "Velho" Escoteiro. Sempre tive uma queda pelo sobrenatural. Dizem por aí que enfrentei o Coisa Ruim quando estive na Garganta do Diabo. Mentira. Tremi feito vara verde. Mas aquela aventura me dizia que ia ser a melhor da minha vida. Dormimos feito crianças com sono. Acordei com o sol começando a despontar na janela. Sentada na porta a Velha Feiticeira nos olhava e virava para a Serra do Gafanhoto. Parecia conversar com ela. Achei que ela estava contando que estamos de partida. Ela nos ofereceu um café. Puro. Forte sem mais nada. Mochila nas costas e partimos não antes dela nos alertar pelo caminho das cobras venenosas. Larissa me olhou espantada. Lembrei que um dia ele disse que detestava cobras. Disse adeus à velha feiticeira. Tirei cinquenta reais e dei para ela. Ela pegou na nota, cheirou. Levou perto do olhos e deu aquela risada com seu único dente naquela bocarra enorme.

                          Não olhamos para trás. Olhei a serra. Alta. Enorme. Parecia nos desafiar. Arvores anãs, muita samambaia. Avistamos uma pequena trilha. Notei muitas marcas de botas. Centenas delas. Ora bolas, a serra devia ser muito bem frequentada. Subimos com o vento soprando de Leste para Oeste. Bom sinal. Dizem que assim quase não chove. Nossos cantis estavam cheios. No meu bornal um estoque razoável de arroz, linguiça, macarrão e batata. Dava para o gasto. Disse a Larissa se ela aguentava andar até às quatro da tarde. Tirei uns biscoitos duros que tinha comprado. Eles eram bons para colocar na boca e esperar derreter sem morder. Sustenta mais. Truque que aprendi com uns vaqueiros mexicanos. Assim a subida renderia mais. Calculei que em dois dias chegaríamos ao topo e lá procurar a tal cabana de madeira do tal Thor Heyerdahl. Vi Larissa dar um grito enorme. Olhei para trás. Uma bela Surucucu enrolada em seu pescoço. Minha faca Escoteira brilhou no ar e deu para cortar sua cabeça em um só golpe. Nunca vi isto. Cobras empoleiradas em árvores. Eram muitas delas. Disse a Larissa para correr. Ela pulavam, mas não nos alcançavam.

                        Graças a Deus ficamos livres delas. E para nossa sorte às três e meia da tarde encontramos uma nascente. Pequena mas dava para o gasto. Passamos a noite ali. Não armamos o toldo. O céu estrelado. Uma noite que não iremos esquecer. Nem bem escureceu a terra começou a tremer. Não podia ser um terremoto. Ali nunca aconteceu. As estrelas no céu piscavam, mas raios enormes riscavam os céus como se fosse uma tempestade cósmica. Larissa não tirava os olhos. Em outra situação seria mesmo um espetáculo o que estávamos vendo. Mas ouvimos passos. Chamei Larissa e nos escondemos atrás de um enorme tronco caído. Meu Deus! Impossível! Dezenas de soldados espanhóis ainda com seus capacetes, como se tivessem saído de uma história do Famoso Francisco Pizarro. Minhas lembranças dos Dragões e Arcabuzeiros do passado se misturavam com o que estava vendo. Estandartes, armados de Lanças e arcabuz curto, ouçarabina e com casaca solta, lembravam a infantaria a galope nas pradarias do Peru. Cantavam subindo morro acima como se estivessem indo para o além-túmulo. Todos eles com as mãos ocupadas. Levavam seus tesouros. Sacos e sacos de dobrões de ouro e prata. Castiçais, vasilhames que brilhavam com o fulgor das estrelas. Ficamos em silencio até o último homem passar. Ele olhou para nós. Fez um sinal de silencio. E seguiu com os outros.

                       Calculei ter pelo menos duzentos soldados. Assim como chegaram sumiram na escuridão da noite. Olhei para Larissa. Vamos dormir fora da trilha. Pensei comigo. Como eles poderiam estar ali na Guiana Francesa? Nunca ouvi falar deles nesta região. Estavam bem longe de suas conquista no Peru e no México. Dormimos um sono do assopra e acorda. Você sabe como é. Um olho fechado e outro aberto. Risos. Bem cedinho nos pusemos a caminho. Assustei-me. A trilha ainda tinha a marca de suas botas, mas algumas marcas pareciam ser mulas. Não vi nenhuma delas. À medida que andávamos uma árvore balançava cobrindo nossas cabeças de folhas secas. Como um foguete uma flecha de fogo cortou os céus e se enterrou em um tronco na beira da estrada. O fogo se espalhou, mas logo se apagou. Olhei para Larissa. Ela tremia. Quer voltar? Perguntei. Não. Não viemos até aqui para nada. A terra tremia e parava. Parecia que pequenos terremotos ali aconteciam. Às quatro da tarde chegamos ao cume. Nem parecia. Ao sul e ao norte uma cadeia de montanhas. Minha experiência dizia que estávamos no cume.

                     Peguei minha prismática antiga e rumei para o leste. Sem erro. Uns quinhentos metros e avistei a cabana. Parecia aquelas cabanas feitas por algum lenhador do velho oeste. Só troncos. E o melhor, saia fumaça de sua chaminé. Ótimo. O tal Thor Heyerdahl deveria estar ali. Batemos a porta e nada. Ela rangeu e se abriu. O fogão aceso. Uma frigideira fritava ovos. Só um cômodo. Onde estaria o Senhor Thor? Chamei. Larissa chamou. Nada. Vi que os ovos já estavam fritos. Melhor tirar da frigideira antes de queimar. Não foi preciso. Ela subiu no ar, e jogou os ovos em um prato ao lado do fogão. O tal Thor devia estar invisível. Disse para Larissa não se preocupar. Fazia parte do jogo. Mas que jogo? Eu nem sabia suas regras. Ninguém apareceu. Vi uma panela de ferro com feijão e fervendo. Ao lado a indefectível farinha de mandioca. – Larissa, vamos comer, acho que este jantar foi feito para nos. Ela não se fez de rogada. Pegou dois pratos que incrivelmente estavam limpos. Duas banquetas rusticas foi onde sentamos. Começamos a comer e eis que o tal Thor Heyerdahl apareceu. Sentado. Sabe onde? Em uma pequena nuvem. Alí dentro da cabana!

                    Ele sorria um sorriso maroto. Lembrei-me do gênio da lâmpada de Aladim. – Olá moço, eu disse. Moço? Eu sou moço? E deu uma gargalhada que fez a cabana tremer. Olhei para ele. Parecia ter no máximo um sessenta anos. Eles nos esperou terminar de comer. Larissa perguntou onde podia lavar. Eu remendei, deixa comigo Larissa. O Tal Thor deu outra risada. Nossos pratos saíram pela janela e em questão de minutos voltaram limpos! Meu amigo, que beleza. Este cara em um hotel ou restaurante faria sucesso. Em uma Patrulha Escoteira seria condecorado! Meu medo diminuiu. Vi que o senhor Thor Heyerdahl era uma espécie de bufão mágico. Não devia ter pensado assim. Ele fechou a cara. Falou com uma voz cavernosa – Onde conseguiram o mapa? Que foi o maldito que contou a maldição da Serra do Gafanhoto? – Contei para ele tremendo o que aconteceu. Ele ficou calado. Durante muito tempo nada disse. Lá fora uma escuridão de breu. Lá dentro uma iluminação fantasmagórica.

                    - Vão dormir amanhã conversaremos. – Mas Senhor Thor? Argumentei. – Cala a boca! Cala a boca! Já disse. Preciso desta noite para pensar se mato vocês, se escalpelo estas vastas cabeleiras, se corto suas pernas para os lobos famintos ou se entrego para o Capitão Diogo de Almagro. Ele sabe o que fazer com forasteiros bisbilhoteiros como vocês! E chega por hoje. Não quero ouvir nenhum barulho. – Olhe, comecei a ficar fulo. Havia anos que ninguém falava comigo assim. Nem meu pai. Só meu avô que um dia quebrei o cachimbo dele e ele me deu uma boa sova com vara de marmelo. Olhei para Larissa. Vi que estava perdendo a coragem. Era muito para ela. Estas coisas do além não são fáceis de enfrentar. Resolvi me calar. Deitei. Ela também. Não conseguia dormir, mas acredite, dormi e como dormi. Acho que o tal Thor me enfeitiçou.

                      - "Velho" Escoteiro. Você não vai acreditar. Amanheceu nevando! Isto mesmo, nevando. Isto não existe e nunca existiu ali naquela região. Eu conhecia a neve Larissa não. Ficou encantada. Saiu brincando sobre a neve. Sorria, cantava, não sabia o perigo que corríamos. Um relinchar de cavalos e logo uns vintes cavaleiros se aproximaram. Nada mais nada menos que uma pequena parte do pelotão espanhol, que ali estava para decidir nossa vida. O Senhor Diogo de Almagro com toda sua imponência desceu de seu cavalo na melhor pose. Tinha mesmo pose de capitão. Uma bela armadura no peito. Um capacete que acho era feito de ouro. Olhou para o Thor e perguntou. Quase ri quando ele falou. Enquanto Thor tinha uma voz cavernosa e de vez em quando trovoava, ele o capitão falava fino. Parecia uma menininha de nove anos. Vi que a Larissa ia rir. Fiz um sinal. Se ela risse seria nosso fim. Eles se consideravam conquistadores e dizer que eram efeminados seria nossa morte.

                     - Thor nos olhou e olhou para o Senhor Diogo. – Foi o Falapeutas. O senhor lembra quando esteve aqui. Pequei em dar a ele um pedaço do mapa que o Senhor Orelhando me deu. Não sabia do seu encantamento. Sem ele eles nunca teriam nos descobertos. – Faça o seguinte Thor, leve-os até a Cachoeira do Inferno. Jogue-os lá de cima. Deixe-os nus. Vão morrer gelado em segundos naquelas águas malditas! Deus do céu! O maldito fantasma queria nos matar! Não pretendia morrer assim. Iria fazer tudo para que isto não acontecesse. Larissa me surpreendeu. Começou a rir, ria a valer. Chegou perto do Senhor Digo, olhou nos seus olhos e com a mão na cintura disse – Você não sabe com quem está falando seu porco do mato. Sou filha de Pachacútec. Você deve lembrar-se dele e sua maldição. Você está aqui por causa dele. Lembra que o Senhor Pizarro queria que ele jurasse sobre a bíblia a ser vassalo da Espanha. Ele não quis. Lembra que centenas de arcabuzeiros receberam ordens para matá-lo e arrasar a comitiva real. E o que aconteceu? Milhares de vocês morreram com a peste dos maias. Caiam como mosquitos doentes. Eu posso fazer o mesmo com vocês!

                       Nossa! Seria mesmo Larissa quem estava falando? Não conhecia estes seus conhecimentos. Ou quem sabe alguma criatura boa das trevas tomou conta de seu corpo e era ela quem falava? – Só sei que o tal Diogo de Almagro tremeu. Fechou os olhos e fungou. Fungou feio. Montou a cavalo. Gritou para o tal Thor Heyerdahl que nos mandasse embora agora mesmo. Mandou nos dar um pequeno saco de dobrões de ouro e prata. Sem delongas. Pegamos nossas mochilas. Estava escurecendo. A neve caia aos borbotões. Olhei para o tal Thor. Ele estava de olhos fechados. Sua nuvem pequena apareceu. Mandou que subíssemos. Não ria "Velho" Escoteiro.  Não ria. Juro pela minha alma, palavra de Escoteiro. A nuvem nos transportou até balsa que estava fazendo sua última viagem. Na margem vi a feiticeira desdentada que dava enormes risadas e pulava feito um macaco querendo banana. O Tal Thor me tomou o mapa. Quando ele se foi à neve desapareceu. A feiticeira desapareceu. A Serra do Gafanhoto agora parecia brilhar com o sol se pondo em suas vistosas arvores verdejantes.

                      - Olhei para Larissa. Ela sorria de leve. Tremeu o corpo e senti que o tal espirito que tinha se incorporado nela se fora. Quem seria? Porque nos ajudou? Nunca soube. Nunca vou saber disto tenho certeza. Larissa não se lembrava de nada. Lembrava sim, da cabana do jantar com ovos estrelados, do jantar com aa feiticeira desdentada e mais nada. Melhor assim. Ela agora era outra moça. Sorria. Um sorriso encantador. Minha velha paixão voltou. Pensei em cortejá-la novamente. Casar, ter filhos. Uma casinha branca lá no alto do morro, no bairro dos ricaços da cidade. Mas sabia ser impossível. Meu destino era outro. Soube das pegadas de um Yeti, ou melhor, do Abominável Homem das Neves. Foi visto no passado na região do Himalaia, agora soube que o avistaram na Cordilheira dos Andes. – Olhei para o Chefe Tony Lantras. Dei uma risadinha. Ele corou. Ficou de pé. Se acha que menti, vou-me embora! Foi saindo deu uma meia volta e colocou na minha mesa, dez dobrões de ouro. Ouro puro. Tentei falar, ele não deixou e foi até simpático. Dê estes dobrões para o grupo Escoteiro mais humilde do seu bairro.  Saiu pela porta e sumiu.

                      - Olhei para o "Velho" Escoteiro. Estava atento. A mente em ponto de bala. Degustei com gosto tudo que ele me contou. Uma história incrível. Ele me olhou também. Não disse nada. Sua testa enrugava e voltava ao normal. Seus olhos piscavam. Abriu a gaveta, tirou os dez dobrões de ouro. Deu-me. -
Faça bom proveito no grupo. Se achar colecionadores, aí tem bem uns quinhentos mil reais. Dá para construir a sede do Grupo Escoteiro e comprar todo o equipamento necessário. Ficou em pé, me deu boa noite e subiu as escadas com dificuldade rumo ao seu quarto. Fui embora. Cheguei a casa cedo. Não era ainda meia noite. Liguei meu computador. Pesquisei quem seria Diogo de Almagro. Achei. Um dos homens fortes de Pizarro. Pesquisei sobre Thor Heyerdahi. Nada. Pesquisei sobre a Serra do Gafanhoto. Nada. Tentei rever a história da Guiana Francesa. Achei o rio Oiapoque. Achei Saint-George de L’oyapock. Mas nada que um dia por ali passasse os conquistadores espanhóis. Quanto aos Yetis eu sabia da história.

                        Melhor dormir. Adoro o "Velho" Escoteiro. As histórias que ele me conta são de tirar o chapéu. Amo este cara de montão. Quantas coisas ele me ensinou. Valeu todo o tempo que passei junto a ele. Espero que ele possa viver por muitos e muitos anos acima dos seus oitenta e cinco de hoje. Aprendi o que sei de escotismo com ele. Viajei por boa porte do mundo com ele em pensamento. Não posso perder nunca estes doces momentos ao seu lado. Que Deus o tenha "Velho" Escoteiro. Que Deus o tenha!  Parte superior do formulário

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"Sucesso significa realizar seus próprios sonhos, cantar sua própria canção, dançar sua própria dança, criar do seu coração e apreciar a jornada, confiando que não importa o que aconteça tudo ficará bem. Criar sua própria aventura!"
 (Elana Lindquist)