Historias e estorias que não foram contadas

Historias e estorias que não foram contadas
uma foto, de um passado distante

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

O "Velho" Escoteiro e o segredo da ilha misteriosa – Fasc. 70



  O "Velho" Escoteiro e o segredo da ilha misteriosa – Fasc. 70

AS LINHAS DA PRAIA
“A lenda insiste em dizer que se alguém repetir 6.000 vezes a frase ‘huka fava dreimoid Kaká iara” as linhas do mar da praia irão lhe levar a um tesouro escondido. Só uma pessoa conseguiu fazer isto. “Mas está desaparecida até hoje”

“Aos contadores de histórias. Devemos a eles a beleza de um espetacular Fogo de Conselho ou de uma gostosa noite de luar”.


                        Foram quinze dias maravilhosos. Para dizer a verdade nunca poderia imaginar o "Velho" se esbaldando e tentando correr como uma “galinha choca” pela praia. O meu amigo o "Velho" estava em pele e osso. Mas ainda ostentava uma saúde que muitas vezes duvidamos se ele resistiria. Vovó e minha esposa se “aninhavam” em baixo de uma castanheira frondosa. Eu não tirava o olho do "Velho". Afinal, 86 anos não e brincadeira. Não deu para perguntar ao seu médico o que ele podia fazer ali. Mas ele teimoso, fazia sempre o que não podia fazer.

                      Tudo começou quando meu Chefe de Departamento da fábrica onde trabalhava me perguntou se não queria ficar em sua casa de praia, no litoral sul. – Olhe meu amigo, não vou lá esse ano. Eu e a família resolvemos ir a Disney e a casa ficará fechada. Porque não vai lá descansar nas suas férias? E para completar disse – Leve quem você quiser. Tem condições de alojar até dez pessoas. Uma oferta tentadora. Falei com minha esposa. Ela topou.

                      No domingo fomos à casa do "Velho". Como sempre saborear o almoço delicioso da Vovó. Quando almoçávamos contei que pretendíamos ficar uma temporada na praia. Notei os olhos do "Velho". Brilhavam. Olhei para minha esposa e ela mesma fez o convite. Porque não vão conosco? A casa é grande e cabe todo mundo. Um sorriso nos lábios do "Velho" mostrava sua satisfação, mas como sempre tinha de se mostrar maniento – Melhor não. Vamos atrapalhar. Afinal você vai ficar sozinho com sua esposa.

Depois do almoço ficou tudo combinado. Quem leva o que, hora da saída, se precisava de uniforme, o de campo ou social. – "Velho"! Pelo amor de Deus. Vamos para praia. – Nunca se sabe meu amigo, podem aparecer alguns escoteiros e vamos nos apresentar como? De sunguinha? – Sem resposta ao "Velho". Sabia que ele gostava de ficar resmungando, mas sabia também que estava adorando o programa. Acho que ele precisava disso. Sempre me disse sua queda pelo mar.

                    Na quarta partimos. Tralha pequena. Própria de escoteiros. Uma viagem ótima. O "Velho" cantando. Uma voz de taquara rachada, mas ele estava alegre e muito. A chegada ele nem se deu o desplante de ajudar a descarregar. Tirou os sapatos e foi de encontro ao mar. Ficou ali por minutos a olhar o horizonte, as gaivotas e o som imperdível do mar aos ouvidos de um mateiro. Os primeiros dias foram de descobertas. Nem sempre conhecemos as pessoas. Podemos conviver por anos, mas só quando estamos juntos é que podemos analisar com precisão o que somos. O "Velho" e a Vovó eram companhias das melhores.

                     O "Velho" ficava o dia inteiro na praia. A casa ficava a menos de cem metros e se não ficasse de olho ele iria sozinho. De manhã tomava café que a Vovó fazia, pegava a cadeira de praia e lá ia cantando o Rata-plã. Nos primeiros dias falamos pouco de escotismo. Contamos “causos” lembranças escondidas na mente e que estavam prontas para serem narradas aos amigos do peito. Os dias foram passando. De manhã à noite, o "Velho" não saia da praia. Eu também gostava. Íamos lado a lado pisando na areia molhada e andávamos quilômetros. Descobri um novo "Velho". Mais novo. Mais atual, e não aquele doente do passado.

                     Uma tarde, o sol se pondo, o "Velho" olhando para o mar disse baixinho – Lembra-se do Justin? Aquele americano que juntos fomos ao vale da Morte e o Francês Pierre que foi mordido por uma cobra Píton? – Balancei a cabeça concordando. Vendo este “marzão” me lembrei de quando fizemos uma bela de uma aventura na ilha de Hornos, ou melhor, rodeando o Cabo Horn, na terra do fogo. Um dia ele apareceu no Grupo Escoteiro. Claro, foi um susto. Tinha mais de oito anos que não o via. Eu já tinha casado com a Vovó e minha filha recém-nascida. Trabalhava muito em meu escritório de engenharia. Não tinha mais tempo para essas aventuras que amava e muito.

                    Justin me abraçou efusivamente. – Meu amigo, você aqui no Brasil?  Foi uma alegria. Todos no grupo se espantaram. Apresentei Justin. Ele não falava português. Arranhou um espanhol e rimos muito. À noite fomos a um barzinho e ficamos lá por muito tempo lembrando nossas aventuras. Tinha convidados vários chefes, mas somente o Rael aceitou ir. Os demais se desculparam. Já tinham compromissos. Rael era chefe de tropa. Solteiro ainda, mas um perfeito cavalheiro. Professor de ciências em um colégio na cidade. Escoteiro desde menino. Um conhecimento enorme de tudo que se pode pensar em escotismo. Rael se encantou com as histórias que contávamos.

                     Justin não se fez de rogado. Olhe, vim com meu pai. Veio a serviço. Como sabem é diplomata e deve ficar aqui uns meses. Eu não. Pretendo voltar logo. Abrí um escritório de acessória em viagens aventureiras e não posso ficar muito tempo. Sabendo que poderia encontrá-lo não perdi o convite de meu pai. Meu motivo principal meu amigo é que estou planejando uma atividade de arromba. Acho que já devem ter lido sobre a lenda da embarcação-fantasma Holandês Voador. Não? Bem vou resumir para não tomar muito tempo.   

                          A lenda da embarcação-fantasma Holandês Voador é muito antiga e temida como sinal de falta de sorte e possui diversas versões. A mais corrente é do século XVII e narra que o capitão do navio se chamava Bernard Fokke, o qual, em certa ocasião, teria insistido a despeito dos protestos de sua tripulação, em atravessar o conhecido Estreito de Magalhães, na região do Cabo Horn, que vem a ser o ponto extremo sul do continente americano.

                          Ora, a região, desde sua primeira travessia, realizada pelo navegador português Fernão de Magalhães, é famosa por seu clima instável e suas geleiras, os quais tornam a navegação no local extremamente perigosa. Ainda assim, Fokke conduziu seu navio pelo estreito, com suas funestas conseqüências, das quais ele teria escapado, ao que parece, fazendo um pacto com o Diabo, em uma aposta em um jogo de dados que o capitão venceu, utilizando dados viciados.
                            Desde então, o navio e seu capitão teriam sido amaldiçoados, condenados a navegar perpetuamente e causando o naufrágio de outras embarcações que porventura o avistassem, colocando-as dentro de garrafas, segundo a lenda.
                            O navio foi visto pela última vez em 1632 no Triângulo das Bermudas comandado pelo seu capitão fantasma Amos Dutchman. O marujo disse que o capitão tinha a aparência de um rosto de peixe num corpo de homem, assim como seus tripulantes. Logo após contar esse relato, o navegador morreu. Uns dizem que foi para o reino dos mortos; outros, que hoje navega com Dutchman no Holandês.

                           Não sei se sabem, mas o Cabo Horn é o ponto mais ao sul da América do Sul e pertence ao Chile, suas coordenadas são 55° 59′ 00″ S, 67° 16′ 00″ O, no final da Terra do Fogo, na ilha de Hornos. Ele é ainda o limite norte do Estreito de Drake, entre a América e a Antártida. É também o divisor dos oceanos Pacífico e Atlântico. Os outros pontos extremos da América do Sul são: ao norte a Punta Gallinas, na Colômbia, ao leste a Ponta do Seixas, no Brasil, e a oeste aPunta Pariñas, no Peru.
O clima na região geralmente é muito frio, com temperaturas médias de 5 °C. Os ventos são de 30 km/h em média, com picos comuns de 100 km/h. As condições locais são muito rudes, principalmente no inverno.

                           Tenho lido muito sobre isso. Até do ultimo navio, um galeão inglês, que dizem abarrotados de prata afundou próximo ao Cabo Horn em 1820, bem junto à ilha de Hornos. Não precisam rir. Não tem tesouro nenhum, eu sei disso. Mas dizem que é o local mais inóspito da terra. Poucos conseguem sobreviver lá. Mas muitos que lá vão, juram de “Pé junto” ter visto a embarcação-fantasma navegando sem rumo, com o Capitão Bernard Fokke ao leme, dando gargalhadas.

                           Claro, eu sei que é lenda. Mas adoro uma lenda. Poucos conseguiram ficar mais de cinco dias na ilha. Um ninho de cobras venenosas, escorpiões amarelos e a noite a temperatura desce até os dez graus negativos na época de calor. E se conseguirmos ir, fazer o caminho de Drake, ficar cinco dias, seremos os primeiros do movimento escoteiro que conseguiram realizar essa bela aventura. Justin falava entusiasmado. Vi que Rael tinha os olhos brilhantes. Sempre quando escoteiro fazia mil e uma estripulias com sua patrulha.

                          Lembro que uma vez a mãe dele procurou-me perguntando onde eles
tinham ido acampar. Não sabia. Não me disseram nada. Nunca isso aconteceu. Estava me lembrando de um fato. Sua patrulha tinha pedido para fazer uma jornada de bicicleta até Monte Alegre. Não disse não e nem sim. Vamos ver na Corte de Honra e ver o que ela diz. A corte foi contra. Achei que nossos monitores foram duros e não deviam ter vetado. Notei em Rael uma decepção. Agora tinha certeza que ele e a patrulha já deviam estar em Monte Alegre.

                          Não disse nada. Falei com sua mãe que não se preocupasse. Estavam em Monte Alegre. Eu acreditava que no domingo no mais tardar a noitinha eles estariam de volta. Dito e feito. Chegaram rindo da aventura. Eu os esperava na sede. Quando me viram um enorme susto. Conversamos muito. A patrulha ficou seis meses suspensa para atividades sem chefia. Acho que aprenderam a lição.

                          Notei que os olhos do "Velho" estavam se fechando. Ainda era cedo. Menos de meia noite. Mas “cutuquei” o "Velho" e o convidei para irmos dormir. Ele nem disse nada, saiu tropeçando e sumiu no seu quarto fechando a porta devagar. Minha esposa já tinha se recolhido. Fui para a varanda. Uma bela vista do mar. Sem lua. Mas as ondas batendo na praia me davam uma sensação de alegria e calma. Também adorava o mar. Pensava comigo que quando me aposentasse iria morar em uma cidade beira mar.


O "Velho" Escoteiro e o segredo da ilha misteriosa – Fasc. 71

Por entre as frias brumas de agosto,
Apareces carregando tua carga funesta!
Imponente!...Em silêncio... Tão morto!
Pelos mares - à deriva, navegas...

Acorrentados! Seguem meus sonhos contigo,
Encerrados lá no fundo do porão!
E riem como loucos um desvairado riso,
E perdidos pelas noites vão!

Estás condenado pelos mares a vagar!
E nas noites sombrias, sem estrelas!...Tão frias!
Navegas à deriva, sem nunca parar!

O bramir da tempestade meus gemidos sepulta!
E enquanto as ondas se elevam com fúria!
Navegas perdido, nas minhas loucuras!

As lendas, mitos e fábulas. São elas que nos transportam para os sonhos e aventuras fabulosas

                    O dia amanheceu cinzento. Mesmo assim o mormaço nos trazia uma sensação gostosa para dar nossa caminhada nas areias brancas do mar. Poucas pessoas àquela hora. Também nas outras horas, pois não eram férias escolares e poucos se arriscavam a passar uma temporada no litoral. Antes das onze da manhã, a chuva fina começou a cair. Voltamos para o chalé. Vovó e minha esposa estavam sentadas na varanda, ouvindo musicas que o "Velho" ouvia, mas não gostava. Make Me A Friend, uma coletânea de musicas cowtry que eu gostava muito, mas o "Velho" não.

                  Interessante que minha esposa não tinha muitas amigas. Quase oito anos de casado e conheci poucas. Em seu trabalho dizia que lá tem colegas. Amigos é outra coisa. Ela e a Vovó se deram bem desde o primeiro dia. A Vovó acho eu, se dava bem com todos. Uma simpatia e uma maneira tão educada para conversar que não tinha quem não ficasse seu amigo na hora. As duas ficavam horas e horas conversando. Uma com mais de setenta anos. A outra com menos de trinta.

                   Eu e o "Velho" pegamos duas cadeiras de balanço, gostosas por sinal e também ficamos ali na varanda vendo a chuva miúda caindo no mar. Ao longe o tempo escuro pronunciava um dia inteiro assim. Tudo bem, não incomodávamos com isso. Ainda ficaríamos oito dias descansando. O "Velho" fingiu que dormia, mas a cadeira de balanço ia para frente e para trás. Interessante. A vida nos reserva surpresas que nunca imaginaríamos. Há dez anos, nem sabia o que era escotismo, e nem conhecia o "Velho". Dou risadas até hoje da primeira vez. Ele, sempre ele com seu estilo inconfundível que me conquistou. Também me colocou no escotismo, uma causa que abracei com orgulho.

                  O "Velho" abriu o olho e sorriu. E aí? Disse – quer ou não quer saber o final da minha aventura na ilha misteriosa? – também sorri. Claro "Velho". Você sabe que estou “faminto” de suas histórias. Vais continuar? – O "Velho" sorriu. Sabe disse – Saudades de uma boa cachimbada. Sempre o que é bom nos privam. Dizem que é para o nosso bem. Que bem? Quero cachimbar e não posso e é para o meu bem? Não disse nada. Tudo que devia ser dito já foi há tempos não só por mim como pelo seu medico e a Vovó.

                  Para lhe dizer a verdade, eu sabia que iria com Justin. – começou o "Velho" a sua narrativa. Justin encerrou dizendo que não ficaria barato. O preço devido ao aluguel de um pequeno barco que precisaríamos por seis dias e apetrechos necessários para uma viagem dessas iria ter um gasto enorme, mas que poderíamos economizar em outras. Justin disse que tinha experiência em navegação. Seu pai tinha um pequeno barco e ele cruzava todo litoral americano há anos. Se tudo desse certo nos encontraríamos no Chile, em Punta Arenas em 23 de setembro do próximo ano. Se eu pudesse confirmar até julho seria bom. Pierre o Escoteiro francês já tinha confirmado. Caso eu fosse, precisavam arrumar mais um. Quatro seriam o numero ideal para dividir as despesas.

                  Justin partiu na semana seguinte. Fizemos ótimos programas e fiz questão de ir com ele até o Pico do Itatiaia. Fomos de carro até o museu e de lá a pé até o pico. Mais de quatro horas de subida, mas uma vista maravilhosa. Rael estava conosco. Notei que ele sonhava com a viagem. Fomos de uniforme e Justin estava com o seu. Um orgulhoso Boy Scout of America. Dormimos lá aquela noite. Pela manhã de domingo regressamos. Rael me confessou que queria ir. Ele faria tudo e o mais difícil não seria o valor a ser gasto. Ele tinha umas economias (calculamos que sair do Brasil até o Chile, pagar a taxa do barco e outras despesas, pelo menos uns cinco mil dólares para cada um).

                  No mês seguinte Rael me disse que iria. Afinal seria a aventura de sua vida. Não podia perder. Conversei com a Vovó longamente. Ela nunca colocou empecilho em nada do que fiz. Sempre me incentivou. Vá meu "Velho". Você sabe que eu não sirvo para isso, mas é sua vida. Viva como ela deve ser vivida para você não se arrepender depois. Tive que fechar meu escritório. Só tinha uma moça como estagiaria e muito nova não daria conta do riscado. Coloquei uma placa na porta – “Escoteiro em viagem pelo mundo” volto em quinze dias. Meus clientes já me conheciam.

                  Partimos eu e Rael no dia 22 de setembro. Chegamos a Punta Arenas a noite. Eu e Justin já havíamos combinado o hotel. Ele estava lá com Pierre há uma semana. Ficamos até altas horas da noite combinando tudo. Ele já havia alugado um pequeno barco. Bem não tão pequeno. Uns 18 pés. Melhor uns seis metros por dois e meio. Uma cabine para três. Uma pequena cozinha. Como tinha experiência e alimentação de campo, em mesmo fiz uma lista e comprei tudo. Acondicionamos tudo no barco. Pierre e Rael ficaram amigos logo. Um sempre ajudando o outro.

                  Partimos à tarde do dia 23 de setembro. Um lindo dia. Um sol vermelho uma temperatura por volta de dezoito graus. Justin disse que traçou um itinerário aonde iríamos primeiro a Ushuaia, Canal de Beagle, Estreito de Magalhães e finalmente o Cabo Horn. Pelos seus cálculos chegaríamos em dois dias. Foram dias maravilhosos onde passamos por geleiras inimagináveis. Lindas. Não ficávamos próximo à costa. 

                  No dia seguinte finalmente chegamos ao Cabo Horn. Tivemos sorte com o
mar que não estava revolto como é comum. Mas o clima não. Uma chuva fria e torrencial que alem dos ventos fortes nos obrigou a ficar a distancia por mais um dia ancorados. Dizem que lá por estar situado no estreito de Drake na Terra do Fogo, o Cabo Horn é o ponto mais austral do mundo. Justin era um excelente navegador. Em hora nenhuma nos colocou em perigo. Para dizer a verdade formamos uma patrulha ideal. Todos se ajudando e descansando em escalas de seis horas.

                 No terceiro dia a chuva diminuiu e o vento não passava de quarenta quilômetros por hora. Isso nos garantiria um desembarque perfeito. Contornamos a ilhar e atrás de uns rochedos dava para jogar ancora e com um barquinho pequeno chegar a terra. Pierre nos contou que quando o vento passa de cento e vinte quilômetros hora a adrenalina de algum navegador de outro século que experimentou passar por lá, chacoalha-se tudo, seu estômago acompanha o movimento e pouco resistem.

                Hoje eu sei que no Monumento Cabo Horn, tem uma placa de metal com o formato de um albatroz, construído em 1992, uma homenagem à memória de muitos homens que desbravaram a região e morreram lutando contra a forte correnteza é uma certeza de uma viagem feliz e perfeita. Agora tem um lance de escadas o que não tivemos na época. Quando o vento forte vindo da Patagônia sopra, é difícil manter o equilíbrio. Ficamos perplexos com a paisagem. Bela e exuberante. Era uma sensação magnífica. A de desbravar uma das extremidades mais almejadas do mundo.

                Nosso plano era desbravar a ilha. Ficar ali por cinco dias. Dormir sempre no barco. Justin conseguiu manobrar o barco bem escondido, de modo que barcos ou navios que passassem não nos avistariam. Assim poderíamos deixar o barco bem ancorado e explorar a lha a vontade. Cada um imagina o que pode ser considerado como o fim do mundo. Pensa-se um lugar isolado, cenário inóspito, horizonte vazio, e agora eu não via assim. Sabia que era o ponto de encontro entre os oceanos Atlântico e Pacífico. Nada a ver com a lenda de que era o último pedaço de terra habitado no extremo sul antes de se chegara antártica.

                 Com a construção do canal do Panamá, que se iniciou em 1880 e só terminou em 1914 a rota dos navios se alteraram. Antes a rota alternativa era contornar o Cabo Horn. Agora poucas embarcações passavam por ali. Com seus 81 quilômetros o canal do Panamá era perfeito para os encontros entre o Pacífico e o Atlântico. Durante três dias passávamos o dia em terra voltando à tarde para o nosso barco. Só um dia avistamos um barco turístico que passou a mais de dez quilômetros da ilha.

                 Cada dia um espetáculo a parte. A dança dos golfinhos, dos tubarões e de uma enorme baleia azul que se deliciou a dar duas voltas na ilha. A vegetação era rasteira e para dizer a verdade só vimos uma pequena cobra, que tentei identificar, mas a duvida se manteve. Poderia ser um pequeno coral, mas sabia que as corais eram sempre enganadoras. No Brasil a chamamos de falsas corais. Passamos ao largo. Não pretendíamos matar nenhuma. Estávamos em seu habitat. Ela tinha todo o direito na ilha. Os pássaros eram outro espetáculo a parte.

                   No quarto dia acabou nossa tranqüilidade. Um barco de uns cem pés aportou na ponta da ilha. A uns dois quilômetros onde estava nosso barco. Ficou ali toda a manhã. Com o binóculo militar do Pierre vimos muitos homens armados no convés. Às duas da tarde em um pequeno escaler de três bancadas percorreram a distancia do barco até a ilha. Aportaram em outra extremidade. Vimos que varias caixas foram descarregadas. Não vimos onde as levaram. Fizeram bem umas oito viagens. Todas carregadas com as caixas.

                  Pararam a noite e pela manhã continuaram. Para dizer a verdade acredito que mais de sessenta caixas. Por fim partiram. Na noite anterior resolvemos dormir na praia. Sobre a areia. Um frio de rachar, mas achamos que se fossemos para nosso barco poderíamos ser vistos. Ainda bem que a temperatura não baixou os seis graus. Achei que não ia agüentar e pela manhã quando o sol apareceu rimos. Quando eles se foram rimos mais. Rael achou que devíamos saber que caixas eram aquelas. Dólares? Ouro? O que seria?

                 Custamos a encontrar uma pequena abertura na encosta sul da ilha. Pequena mesmo. Bem escondida. Se não fossemos escoteiros e tivéssemos bons conhecimentos de pistas jamais encontraríamos. Rael era bamba. Pegadas, folhas amassadas, enfim uma infinidade de pistas que só ele mesmo para descobrir. Mais de cem degraus em pedra bruta nos levou a uma gruta enorme. Um pequeno riacho passava de norte para sul. Nem sinal das caixas. Procuramos por hora. Já estava desistindo quando Pierre descobriu uma pequena pedra que levava a outra abertura.

                   Lá estavam as caixas. Tinha mais. Não eram somente as que eles trouxeram nestes dois dias. Fiquei com medo de abrir. Justin não. Ele e Rael abriram uma. Uma enorme surpresa. Não eram dólares nem ouro. Armas. Uma enorme quantidade de armas que nunca tínhamos visto. Algumas de aspectos tão sinistros que daria para imaginar um tiro com ela. Olhei para Pierre, olhamos uns aos outros. Saímos Dalí logo. Estávamos mexendo com fogo. Correndo um grande perigo. Saímos da ilha, pegamos nosso barco e partimos. Era para ficar mais dois dias. Abreviamos. Chegamos a Punta Arenas dois dias depois. Uma forte tormenta nos pegou no caminho. Se não fosse Justin acho que teríamos soçobrado.

                    Nem bem chegamos Justin telefonou ao seu pai. Ele mandou que nos dirigíssemos a Santiago do Chile e procurássemos a embaixada americana. Eles já nos esperavam. Ficamos horas explicando. Pierre e Rael eram bons em mapas e croquis. Uma unidade da marinha americana partiu para a ilha. Não fomos. Eu e Rael voltamos para casa desta vez a bordo de um jato da Força Aérea Americana. Despedi de Justin, de Pierre. Lagrimas nos olhos. Mais uma grande aventura.

                   Dois meses depois, no Grupo Escoteiro recebemos a visita de um cônsul americano acompanhado de autoridades brasileiras. Mais precisamente um brigadeiro da FAB. Na frente de todo o grupo, deram a mim e ao Rael uma medalha de agradecimento. Junto uma águia feita de prata, com a bandeira americana. Bem éramos brasileiros, mas se estavam nos agradecendo tudo bem. Justin nos telefonou um mês depois. Uma grande quadrilha de contrabandistas de armas. Faziam parte até um general e cincos oficiais do exército americano. A quadrilha era chefiada por um europeu.

                   Disse também que as armas eram para um país africano e se fossem entregues uma enorme carnificina iria acontecer. Seu pai não quis dar conhecimento à imprensa de quem tinha descoberto tudo. Para nos salvaguar. Poderíamos ter represálias ou vingança. Não se sabe. Pela sua voz vi que havia gostado da aventura. Ele até deu um nome a aventura que fizemos O Segredo da Ilha Misteriosa. Não avistamos o Capitão Bernard Fokke ao leme de seu navio fantasma. Nem descobrimos nenhum tesouro, mas tínhamos encontrado a ilha mais misteriosa e linda que já tinha visto.

                    Hoje sei que turistas estão a visitar a ilha diversas vezes ao ano. Tudo foi melhorado. Navio de grande porte de volta da antartida passam por lá. Contam histórias aos passageiros que se assustam, mas ninguém acredita. Gostaria de ter visto a embarcação fantasma Holandês voador. Não vi. Mas vi golfinhos, tubarões, balelas azuis, milhares de peixes nos arrecifes, um mar maravilhoso, grandes geleiras formando incríveis icebergs. Eu sabia que tudo era uma lenda, mas que lenda maravilhosa.

                   Passaram-se anos até que vi Justin de novo. Em um acampamento que fiz com uma patrulha de monitores do grupo em Papricantis Neandertalis. Uma pequena cidadela entre o Chile e o Brasil. Pesquisadores, cientistas, parapsicólogos e curiosos dizem que lá foram encontrados resquícios históricos jamais imaginados. Ninguém dizia que resquícios eram esses. Mas a patrulha sênior quando contei logo gritaram – Vamos lá! Era sempre assim. Como eu também se tornaram aventureiros. Não foi surpresa encontrar lá acampado Justin e Pierre. Velhos amigos se encontrando, mas esta é outra historia.

                   O sol começou a brilhar no horizonte. O "Velho" parou sua narração. Vamos? Disse – Vamos! Eu disse. E lá fomos nós para a praia, onde centenas de gaivotas nos acompanhavam com seu barulho infernal. Ao longe avistamos o porquê. Pescadores estavam tirando a rede do mar e elas estavam abarrotadas de peixes. Olhei para o "Velho". Ele olhava a frente. Seus olhos brilhavam. Oitenta e seis anos. Uma vida cheia de aventuras. Historias mil para contar. É "Velho". Eu te amo. Você entrou na minha vida e nela irá permanecer para sempre.

O MAR QUE TIVE POR LEMBRANÇA

No mar, balança o óleo e não se acalma!
Agonizo n’água!...Sou ave pequena!
O negror do óleo devora a minha alma,
Meus ossos!...Até as minhas penas...

Inda arrisco um curto esvoaçar...
Um vôo breve... Ó expectativa vencida!
E caio n’água, no negror do mar!
Do óleo que desfez - em mim -, a vida...

Enegrecido o bico... Tão grande é a dor!
Agonias chilreando pelos ares!
Foi o eco que o negror do óleo deixou...

Engolfa o Golfo o negro óleo que avança! 
E engolfando todas as aves!
Engolfa o mar que tive por lembrança...
Lusos poemas



sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Atividades aventureiras para chefes escoteiros. Fasc. 48.



“Quem cede a sua liberdade essencial em troca de um pouco de segurança temporária, não merece nem liberdade nem segurança”.
Benjamim Franklin.

Atividades aventureiras para chefes escoteiros. Fasc. 48.

Porque a escolha do caminho eu não sei. Não me pergunte. A resposta é sempre a mesma. Livre arbítrio. Claro, poderia ter escolhido outro, mas não, escolhi aquele. Devia ter perguntado aos outros chefes, mas não perguntei. Tudo bem, agora era ir em frente e seja o que Deus quiser.  A trilha se fora e agora nem a bússola ajudava. Um caminho íngreme, cheio de ribanceiras, com aguada a cair de belas cachoeiras, mas que não nos levavam a lugar algum. Claro, estava com medo e quem não estaria no meu lugar? Os demais se mantinham calados e nada diziam. Achavam que eu era o guia e sabia o que estava fazendo. Caramba! Puro engano, no começo me sentia bem, mas agora estava trêmulo, com a respiração pesada e me maldizia pela ideia daquela louca aventura.

Pensei que eu e mais onze escotistas do grupo que prestava a minha colaboração estávamos bem preparados, alguns claro, Insígnia da Madeira e isto era ou não um passaporte para uma grande aventura? – Se para as tropas estávamos sempre sugerindo tais atividades e olhe sempre ficávamos com inveja dos jovens por que nós chefes também não podíamos ter a nossa? No Conselho de Chefes dei a ideia e foi aprovada de pronto. Nem discussão houve e olhe que nosso conselho era bem animado e a plena democracia era ali praticada com muita seriedade. Fiquei surpreso ao ver a adesão de tantos. Onze. Inclusive uma chefe de tropa feminina e outra de guias. Outros tantos não iriam porque teriam atividades escoteiras ou familiares e profissionais já programadas naquele fim de semana prolongado.

A Serra do Mirvana foi à escolhida. Diziam os que lá estiveram que era um lindo local ainda com matas preservadas, lindas cachoeiras e no pico uma vista de tirar o fôlego. Conseguimos um mapa do local, e até nos foi oferecido um guia o que educadamente recusamos. No programa sairíamos de ônibus na terça a noite e voltaríamos no domingo. Afinal somos ou não grandes exploradores, guias natos de jovens meninos e meninas que também se animam a escalar das serranias as alturas? (contemplais que vereis, são jovens escoteiros, entusiastas, joviais, briosos brasileiros que lá vão brincar ao léu de uma aventura! – parte de um poema escoteiro).

Mas imaginem quem praticamente se obrigou a ir conosco quando ficou sabendo da grande aventura dos molezas, como ele próprio batizou. Claro, nada menos que o “Velho”. 82 anos, com seu andar claudicante, respiração sempre fora do normal, e para aquela atividade seria o “fim da picada” ele ir conosco. Seria é claro um estorvo e uma grande responsabilidade para os demais chefes. Falei para a Vovó tentar dizer a ele para desistir da ideia. Ela sorriu amavelmente e disse que isto seria impossível. - Se ele morrer no campo ou em uma atividade ao ar livre e melhor ainda em um acampamento, já disse a você, ele morre feliz. Lá também é seu hábitat.

- “Velho”, pense bem - dizia eu - vão ser cinco dias enfurnados em matas, corredeiras, subidas e mais subidas, praticamente vamos dormir sobre as estrelas, pode chover, esfriar, muitas vezes nosso almoço será frio, pois não teremos tempo de acender fogo a não ser à noite.  - Você alega ter algumas dores aqui e ali, toma mais de seis remédios por dia, afinal quer se matar? Eu não quero ver você dar um “siricutico” de velhice comigo na hora H. Infelizmente desta vez você não pode ir. - Porque disse aquilo não sei. O “Velho” pela primeira vez me olhou com os olhos cheios de lágrimas e nada disse. Ficou calado, sentado em sua poltrona preta de vime, com seu cachimbo apagado, a me olhar com aqueles olhos que preferia ter ido para o “meio dos infernos” a sentir aquele olhar tão meu conhecido, tão amado e agora eu me odiava profundamente.

Ele se calou. Nada mais disse. Fiquei ali mais algum tempo conversando com a Vovó, mas com a voz engasgada. Ela também nada comentou. Comi um ou dois biscoitos de polvilho, uma pequena caneca com chocolate quente que demorou a descer pela garganta e fui embora. No caminho para minha casa me maldizia pela ideia.   “Deus do Céu” o homem que aprendi a gostar, a amar, a ter como meu guia, meu professor, meu pai e agora estava lá, magoado comigo, tentando nos seus derradeiros anos de vida voltar ao passado, fazer atividades como sempre fez e eu ali, dizendo para ele que não?

Quando voltei do serviço à tarde, passei na casa dele. Estava na mesma posição de ontem à noite, taciturno, sem falar, olhou para mim, seus pequenos olhos azuis me encararam, mas nada disse. Não era o “Velho” que conhecia. A Vovó comentou que ele passou a noite na poltrona, calado, sorrindo para ela, mas sem argumentar, sem ao menos dizer que eu estava errado, não podia mais fazer aquilo, seu tempo se foi com o tempo e agora era lembrar, lembrar e sorrir com o que fez com o que construiu, com as amizades adquiridas e mais nada.

Liguei da minha casa para todos e expliquei a situação. Disse que infelizmente eu tinha que assumir a responsabilidade e levá-lo. Claro ouve argumentos contrários, mas todos conheciam o “Velho” e assim, dei a notícia para ele, sorridente, pensando que ele iria pular da poltrona, e dizer – Maravilha, muito bem, agora uma volta ao passado e morrer feliz. Mas não, ele continuou calado, nada disse. Os dias foram passando, os preparativos, as conversas, as ideias, a compra de passagens, alimentação, enfim um “mundão de coisas” que nós escotistas bem conhecemos. Sempre passava pela casa do “Velho” e ele nada dizia calado como sempre, totalmente diferente do “Velho” que conhecia. Cheguei à conclusão que a senilidade dele estava mais que presente. Levá-lo seria um perigo e um grande erro.

Como não houve manifestação por parte dele e da Vovó nos dias que se seguiram, achei que ele tinha desistido e para não sofrer mais vendo seus olhos, sentindo a dor da ilusão de ser um velho, alguém que agora não serve para nada, a não ser falar, falar e falar evitei ir a sua casa durante a semana. Acho que consegui esquecer pensando na adrenalina que se aproximava. No dia determinado, nos encontramos na sede lá pelas dezoito horas.  As esposas e parentes com seus veículos nos levaram até a rodoviária, onde de ônibus partiríamos as vinte e duas horas. Nossa viagem seria de mais ou menos três horas e meia, e desceríamos próximo ao rio dos Mandaquís, já bem na entrada da Serra do Mirvana, conforme nos foi explicado pelo motorista. O retorno poderia ser ali, no domingo entre dezesseis e dezesseis e trinta horas, horário do retorno do ônibus.

Na rodoviária, despachamos nossas mochilas, pois levá-las junto conosco dentro do veículo seria um contra censo. Ficamos ali batendo papo, comentando as últimas e de repente, para nossa surpresa vimos sentado em uma poltrona longe da nossa, nos observando de soslaio nada mais que o “Velho”, sorridente, com a Vovó e a filha que devia tê-lo trazido. Caramba! Pelas barbas de Maomé, esta eu não esperava. Dirigi-me a ele, assim como todos os escotistas, pensando que ele fora ali para despedir de nós, dar-nos alguns conselhos (era seu feitio) e nos desejar uma excelente atividade aventureira.

Mas não, o “danado” já tinha despachado sua mochila inglesa tão conhecida de todos, e ali estava com seu uniforme caqui curto, seu chapéu de abas largas com jarrete e tudo que tinha direito, uma pequena bota preta bem engraxada, uma faca escocesa na cintura do lado direito além do canivete suíço, do lado esquerdo uma machadinha, pequena e afiada bem protegida com a capa. Sem esquecer é claro, seu cantil americano de 1940 que ganhou de um soldado seu amigo, que participara da segunda guerra mundial. Perto da faca, um pequeno cabo de uns 15 metros, enrolado a moda escoteira, (fácil para soltar e usar) e no pescoço, enfiado no bolso direito sua bússola “Silva”, velha de guerra como ele dizia. Levava ainda uma forquilha pioneira, que conforme explicou era para tornar sua caminhada mais confortável.

Rimos alto. Ninguém nada disse contra, não houve oposição e agora sabíamos que poderíamos não atingir o objetivo, ou seja, o pico do Mirvana. Mas valeria a pena ter a companhia do “Velho”.  A Vovó e a filha nos incentivaram, e se elas não estavam preocupadas teríamos como obrigação de também concordar com a participação dele. A viagem foi um sucesso. Ninguém pode dormir. O “Velho” não deixou. Cantava, contava piadas, motivaram os outros passageiros a cantar a Arvore da Montanha, Japeanã, o Cucu, Anauê, Piripiri, Aconcágua, avançam as patrulhas, Canção do Clã e tantas outras canções lindas que já tínhamos esquecido em nosso repertório e que ali voltou-nos à lembrança de quem canta seus males espanta!
                               
Agradecemos aos passageiros, ao motorista, todos enfim que naquelas três horas e meia ficaram nossos amigos e vimos o “Velho” já equipado com sua mochila às costas, nos chamando de molengas e dizendo - As patrulhas já avançaram e estes chefes “pernas de pau?” – Rimos e esperamos que durante o percurso ele se mantivesse sempre assim. Naquela época não tínhamos o telefone celular e acho que se tivéssemos perderia a graça de uma boa aventura, de uma boa jornada, pois na hora H era só telefonar e pronto. Bombeiros, salvamento, helicópteros tudo para salvar os marmanjos que se dizem chefes. Partimos. Era uma boa subida no início em uma estrada de terra que nos levaria até o rancho dos guardas florestais. Ali já éramos esperados, pois pedimos antes autorização.

O “Velho” parecia conhecer o caminho. Acho que pesquisou muito sobre ele ou quem sabe, já tinha ido ao pico algum dia no passado. Não sabíamos, mas ele nos mostrou exatamente onde era a cabana e quando chegamos não tinha nenhuma dúvida. Era como ele havia descrito. Encontramos um guarda ainda acordado, nos apresentamos, conversamos e ele educadamente disse que o caminho era perigoso, se sabíamos o que iríamos enfrentar, enfim, nos deu ainda todas as dicas. Pernoitamos na cabana, bem espaçosa, com colchonetes improvisados e o “Velho” foi o primeiro a dormir. Vi em seu rosto um sorriso, uma alegria contagiante que naquele momento não pensei nas consequências de levá-lo conosco.

Deve ter sonhado com seu passado, com suas aventuras, com uma vida escoteira tão cheia que até hoje, após oito anos que o conheço, pouco sei a seu respeito. Ainda teria muito tempo com ele, para ouvir, sentir o que é ser e ter o “Espírito Escoteiro”. Pela manhã, nem bem a aurora tinha dado as caras e já estávamos enfrentando a subida. Eu estava com o mapa. Achei que era um bom conhecedor em leituras de mapas e ensinava aos monitores como fazer um croqui, ensinava o passo duplo, ensinava como fazer um percurso de Giwell, portanto era o mais indicado. O “Velho” aceitou normalmente. Não fez nenhuma objeção.

Era o primeiro dia, a alegria era geral. Já pelo meio da manhã, a vista era maravilhosa e isto sem atingir o pico que calculávamos ser lá pelas dezesseis ou dezessete horas. Já não havia mais estradas só uma picada que nos levava diretamente a uma floresta, cujo final desconhecíamos. Paramos lá pelas treze horas, lanchamos, descansamos um pouco e partimos. Notei que o “Velho” agora estava calado, mas não tinha aparência de cansado. Só não falava com ninguém. Sempre escrevendo em um bloquinho que levava no bolso de trás. Se perguntado, respondia em monossílabos. Bem, melhor assim, esperávamos que ele aguentasse firme, pois nosso palpite era que iríamos ter problemas com ele.

O relógio marcou quatro horas, cinco horas da tarde e ainda estávamos naquela mata, que aos poucos ia se fechando e a trilha já não existia mais. Tinha desaparecido. Olhava de vez em quando minha bússola, consultava os outros e sempre achando que o caminho era o correto. Ao “Velho” não perguntamos, pois achamos que ele não tinha a menor ideia onde estava e não poderia ajudar. As chefes femininas caminhavam até melhor do que nós, e sempre com um sorriso nos lábios.

Escureceu. Um breu. Tínhamos lanternas e velas. Paramos, comemos um pequeno lanche e resolvemos dormir ali. Não alcançaríamos o pico naquela quinta. Ficaria para a sexta, o nosso programa era elástico e poderia ser modificado. Dormimos não sem antes termos um pequeno fogo, algumas canções, histórias e estórias contadas, o “Velho” contou uma de um vaqueiro que se apaixonou pela filha do fazendeiro do Juruá e morreu afogado no Rio das Sete Noivas, onde quem morre diziam não vai para o céu. Ninguém sabe por que e como morreu, pois era um excelente nadador. Ela nunca mais se interessou por ninguém. Não saia de dentro de casa. Passou anos e anos trancada até que seus pais morreram.

Um dia alguém foi visitá-los e não acharam ninguém. A casa estava vazia, com todos os móveis. Sua história demorou mais de meia hora para ser contada. Mas prendeu a atenção de todos. Só mesmo o “Velho”. Veio à quinta. Partimos. Achávamos que após umas duas ou três horas a mata desapareceria e avistaríamos o pico. Diziam que lá tinha uma bela cachoeira, e que a margem um belo bosque para passar dias e dias acantonados. Nada. Já tínhamos lanchado e nossa caminhada continuava. Quatro horas da tarde, a mata não acabava. Logo víamos que o caminho estava se tornando impossível. Pedras e mata fechada, espinhos, corredeiras fortes enfim, dificuldades que nunca poderíamos imaginar.

Fizemos um pequeno intervalo lá pelas dezoito horas, trocamos ideias e resolvemos escolher um local para pernoitarmos. O “Velho” sempre calado a não ser de vez em quando assoviar o Rataplã nada disse e claro nem foi perguntado. Ainda bem. Ele tinha um excelente espírito escoteiro para sua idade. Não foi uma noite das melhores. Dormimos mal, Cada um pensando o que ia ser da atividade. Eu estava muito preocupado. Principalmente com o “Velho”. Ele parecia dormitar encostado a uma árvore. Não quis montar seu pequeno colchonete e seus apetrechos noturnos.

No dia seguinte partimos. Comecei a me preocupar com a jornada ou acho eu, a aventura que não sei se estava começando ou terminando. Interessante que o “Velho” nunca mostrava sinais de cansaço. Olhei que sua mochila estava bem cheia, com todos os seus apetrechos, e seu uniforme se matinha em forma, pois não dormia com ele (tinha um macacão próprio para dormir) e quando o olhávamos era como tivesse saído do chuveiro e se preparar para uma atividade nacional. Agora a preocupação era de todos. O caminho sumiu. Só subida que demorávamos mais de uma hora para percorrer poucos metros. Lá pelo meio dia, paramos e após um lanche partimos. Veio à tarde, nada. Ainda olhava o mapa, colocava minha bússola em ação e assim andávamos mais uns poucos metros.

Escureceu. Como sempre era melhor pernoitar, uma pequena chuva começou a cair. Agora tudo bem. Vamos ser presenteados. Vimos o velho com sua machadinha começar a cortar alguns galhos. Sentados, já com capas de plásticos que tínhamos levado, vimos que em poucos minutos o “Velho” fez uma pequena cabana que não daria para dormir, mas sentados caberiam todos e assim passamos a noite. E eu me preocupando com ele e ele nos mostrando aos poucos como fazer e o que fazer. Durou pouco a chuva, mas molhou todo o terreno que estávamos. O “Velho” nos mostrou como com pequenos galhos entrelaçados e folhas poderíamos dormir sem sentir o frio do chão molhado. Vivendo e aprendendo!

No sábado, bem cedinho, nos reunimos e decidimos voltar. Era melhor. Não estávamos no caminho certo. Eu e todos os chefes já nos considerávamos perdidos.  O “Velho” não concordou. Afinal nosso objetivo era o pico e se a Serra do Mirvana nos amedrontava, não tínhamos condições de sermos chefes escoteiros. Somos escotistas, não é qualquer serrinha que vai nos dar uma lição. – “Velho”, você está vendo o que acontece, está junto conosco, não tem opinado, mas sabe que não temos a menor noção de rumo. É melhor voltar e depois contar para todos esta aventura que estamos vivendo e lembrar-se dela sempre.

- Pode ser uma boa ideia – disse o “Velho”. Lembrarmos-nos de nossa derrota nesta serrinha porcaria. Mas acho que não é digna de chefes escoteiros. Afinal hoje é sábado, temos até à tarde para atingir nosso programa e então pensar na volta. Vi que não era bom argumentar com o “Velho”. Perder mais um dia naquela mata não estava nos meus planos. O “Velho” educadamente me perguntou se cedia a ele por umas duas horas a liderança da atividade, não mais que isto. Vou mostrar a vocês como trato serrinhas como esta. Todos riram. Acho que não conheciam o “Velho”. Não sei o que ele queria, em um terreno desconhecido, com sua idade, talvez até mais cansado do que parecia e agora querendo tomar as rédeas da atividade?

- Bem, porque não “Velho”, disse um dos chefes, acho que todos nós concordamos e perguntou aos demais um por um. Por unanimidade deram ao “Velho” aquela oportunidade. Poderia ser uma das suas ultimas de sua vida, pois não acreditava que ele pudesse fazer uma nova atividade como aquela e se assim o fizéssemos feliz, valeria a pena sem sombra de dúvida perder mais algumas horas antes do retorno. O “Velho” sorrindo, disse a plenos pulmões – “Quem for escoteiro que me siga!” e lá foi cantando - Avançam as patrulhas, lá ao longe, lá ao longe, e nós sem saber o que dizer o seguimos, mas sem nenhuma esperança. Andamos bem umas 2 horas, descendo, subindo, para noroeste, para sudeste, para esnordeste, sulsuldoeste, enfim estava eu já perdido na direção e no rumo seguido. 

Esperei dar meio dia e já ia dizer para o “Velho” que seu tempo tinha terminado e meus amigos, avistamos uma trilha que com poucos metros nos levou para fora da mata e de lá já se podia avistar o pico. Com menos de 2 horas atingimos o ponto final. “Maravilha”, “danado de “Velho”, ou ele conhecia o caminho ou estava gosando com nossa cara ou então era melhor leitor de mapas do que eu e os outros”. “Velho”, você me deixa surpreso, afinal você já tinha vindo aqui não? – Claro que não, o que fiz foi pesquisar bem o local por mapas e na biblioteca do bairro deu para pesquisar bastante. Eu sabia de cor o tamanho da mata, quando andaríamos e que as trilhas iam e desapareciam. Durante o percurso fiz meu próprio mapa e sabia onde estávamos a cada passo.

Poderia ter mostrado o caminho certo desde o primeiro dia, mas achei que vocês mereciam uma bela aventura para não se esquecerem durante todas as suas vidas. Que você pratique e aprenda – Se vai para o mar, avie-te em terra meus queridos chefes escoteiros. A vista era realmente fantástica. O dia estava lindo. Sem nuvens e podíamos avistar paragens longínquas que não conhecíamos e acho que não iríamos conhecer tão cedo. O final da tarde de sábado foi estupendo. Vermelho ao sol por, delicia do pastor. Alegre, cantante, abraços, sorrisos e a beira de um pequeno córrego com seu trovejar de águas calmas e doces.

A noite foi tranquila, um céu cheio de estrelas, uma pequena lua minguante, o vento soprando leve de sueste a nordeste, um fogo aceso, muitas historias, o cachimbo do “Velho” com seu perfume adocicado, as canções, ah! As canções. Lindas, cantadas com suavidade e quase acreditei que éramos um conjunto harmonioso a se apresentar para uma plateia de mais de 10.000 escoteiros em um Jamboree realizado ali, naquele momento mágico. Dormimos embalados pela grande aventura que passamos. Com sonhos simples, outros fantásticos, de um começo, de um meio difícil e de um final feliz.

A volta foi sem atropelos. Com menos de quatro horas de descida já tínhamos chegado à rodovia. O ônibus não demorou e o retorno tranquilo com muito ronco de chefes esgotados dormido. Na quarta feira seguinte, fui à casa do “Velho”, e conversa aqui e ali (ele estava sorridente, totalmente diferente do “Velho” que conhecia) falamos das atividades aventureiras para chefes escoteiros. – Improvisação – disse - Saber onde como e onde, mas sempre improvisando. Só assim poderemos ter uma grande aventura para lembrar.

Mas “Velho”, porque nos deixou tanto tempo a deriva, poderia ter nos ensinado e assim chegaríamos mais cedo ao pico, podendo apreciar mais aquela bela paisagem. - Olhe, - respondeu o “Velho”, o sabor da aventura vem do improviso, da dificuldade, da duvida e até desconfiança do certo e do errado. Lembro que aprender a fazer fazendo é o melhor método e nunca, mas nunca mesmo poderá ser substituído. Isto vale para os jovens, mas vale também para nós adultos. Esperei o momento certo para agir, pois vi que todos não estavam devidamente preparados para uma atividade com aquela.

Na tropa temos que ter certeza que os monitores estão devidamente adestrados para que possamos confiar a eles uma atividade aventureira, mas claro, nunca como a que vocês se comprometeram a fazer. Acho que aprenderam a lição. - Se – continuou o “Velho” – não tivesse deixado vocês a vontade, tentando acertar e mostrasse o certo, será que valeria a pena chegarmos cedo, ver belas paisagens e em compensação perderíamos os tombos, o medo, a chuva, a improvisação, enfim tudo aquilo que passamos e que chamamos sempre uma grande aventura – Suas é claro, pois é já vivi muito isto.

- Olhe “Velho”, até posso concordar, mas tive medo por você, tive dúvidas em levá-lo, pensei sempre no pior, mas você nos mostrou que devemos sempre confiar. Quando achamos que o ajudávamos, era você quem nos ajudava. Vovó veio cantando baixinho, e rindo disse do que o “Velho” tinha contado a semana inteira para ela e para a filha a historia dos chefes “patetas” na Serra do Perdidos. Já estava cansada com aquela lenga lenga toda e gravei tudo para que ele não repetisse para todos a mesma coisa. – o “Velho” ralhou amigavelmente com a vovó e ela disse que era brincadeira. Riram a valer da piada.

Fui embora para casa, ruminando como são as coisas. Não procuramos nossos velhos para nada. A não ser para um abraço, um sorriso forçado, e achamos que somos os donos da verdade. Olhamos para eles com ar de superioridade, pois achamos que temos todas as soluções e quando damos conta já é tarde demais. Vejo muito isto em Grupos Escoteiros, em algumas famílias. Poucos mas poucos mesmos são aqueles escotistas que procuram seus velhos e antigos escoteiros para um bate papo, uma troca de ideias e pedir conselhos de como fazer, como agir, aprender e saber como conseguir o sucesso na caminhada. Julgam-se no caminho certo, acham que assim é que se faz.

Paciência, este não é meu caso. Cada dia aprendo mais com o “Velho”, oitenta e dois anos e ainda dando exemplos, ensinando como se faz. É pena que não tenha centenas de “Velhos” espalhados pelos Grupos Escoteiros neste nosso imenso Brasil.
                                                                    O PATA TENRA

A ESCOLA DA VIDA
_ A vida é bela quando não é complicada.
(Robert Browwing);
- Este mundo é duro para conquistar: Cada rosa tem seus espinhos, mas cada rosa tem sua beleza.
(Frank L. Stanton)
- Ninguém passa a sua vida sem deixar suas pistas, assim como quem passa pela roça.
- Somos bobos quando somos jovens! Porque pensamos sermos mais sábios dos que passaram pela escola da vida, esquecendo que deveríamos aprender deles algo todos os dias.
(Janes na Fisbrug Gazette).
Baden-Powell