Historias e estorias que não foram contadas

Historias e estorias que não foram contadas
uma foto, de um passado distante

domingo, 2 de setembro de 2012

Quando o sucesso bate a sua porta. Fasc. 75



Quando alguém encontra seu caminho precisa ter coragem suficiente para dar passos errados. As decepções, as derrotas, o desânimo são ferramentas que Deus utiliza para mostrar a estrada.

Quando o sucesso bate a sua porta. Fasc. 75

          Naquela quinta cheguei mais cedo à casa do "Velho" Escoteiro. Era um dos meus dias na semana que nunca deixei de lhe fazer uma visita. Saia cedo de lá, mas ouve casos de ficar até altas madrugadas. O "Velho" Escoteiro parece que não tinha sono. Quando começava a falar não parava ou quando parava melhor debandar. O "Velho" Escoteiro era uma figura única. Como conhecia o escotismo. Sabia tudo. Dizia sempre que era nossa obrigação conhecer como agir e como fazer. Quem sabe fazer a massa sabe fazer o pão era uma das suas máximas. Era realmente uma figura. Para mim até muito mais, pois o considerava como um pai.
          Entrei na sala grande como sempre e não o vi. Não era usual isto. Vovó logo chegou com um belo sorriso. Conversamos e ela me disse que ele tinha ido dormir mais cedo. – O que? Perguntei. Que milagre foi esse? Senti a Vovó triste. Não era aquela de sempre. Sentamos e ela me contou que o "Velho" Escoteiro recebeu a visita de um amigo. Não era exatamente um amigo. Respeitavam-se sim, pois ambos participaram por muito tempo como adestradores e o "Velho" sempre reclamava porque na época ele quase nunca participava de seus convites para cursos e outros eventos que ele organizava. Havia sim uma enorme diferença entre os dois. Enquanto o "Velho" Escoteiro tentava de todas as maneiras mostrar que devia se mudar muitas atitudes e normas na liderança, principalmente a sede por cargos que nunca acaba seu amigo era diverso. Acreditava que estavam no caminho certo e os defendia em tudo que o "Velho" dizia.
           - E sabe que hoje discutiram muito?  Disse a Vovó. Nunca vi o "Velho" assim. Sempre se respeitavam. Mesmo divergindo tinham aquela “fleuma” Escoteira que só os mais velhos tem e que é verdadeira. Tudo por causa de um relatório de 2007. Pode isto? Estamos em 2012 e eles discutindo por 2007? – Mas Vovó, que relatório é esse que não conheço? Olhe o "Velho" também não conhecia. Seu amigo foi quem trouxe uma cópia. Porque não sei. Vovó levantou e foi até a estante e de lá trouxe uma encadernação de mais de 80 folhas. Na capa escrito – O Escotismo Brasileiro no primeiro decênio do século XXI. Escrito pelo Doutor Jean Casaigneau que a pedido da UEB fez um diagnostico perspectivas, propostas e recomendação sobre o Escotismo Brasileiro. Quando o "Velho" leu se assustou.
            - Vovó começou a desfiar seu pensamento o que quase nunca acontecia. Olhe meu amigo, ele leu o relatório e o achou perfeito. Mas o que houve? Ele sentia que pouca coisa tinha mudado. Tentou dialogar com seu amigo. Um diálogo difícil. Ambos se defendendo e acusando. Nunca chegariam a bom termo. Caminhos diferentes, escolhas diferentes. Você sabe eu não gosto de interferir no que o "Velho" Escoteiro faz. Temos uma vida em conjunto e o respeito muito. Sei de tudo que deu e fez ao escotismo. Talvez além do que devia ter dado. Mas ele sempre foi teimoso. Sonhava alto e seus sonhos ficaram perdidos nas estradas da vida.
             Vovó se calou. Achei que devia ir embora. Quando ela parava a conversa era igual ao "Velho" Escoteiro. Não me deixou sair sem tomar um chocolate quente e comer alguns biscoitos de polvilho o meu preferido. Fui para a casa e como estava de carro não deu para pensar muito. Morava a menos de quatro quarteirões do "Velho" Escoteiro. Dormi logo e não pensei no assunto. Na sexta não costumava ir à casa do "Velho" Escoteiro. Aproveitei para ler o relatório na integra. Muito interessante. Mas não tinha argumentos para ver o certo e o errado. As opiniões que o Doutor Jean ouviu de participantes não tinha o que discutir. Mesmo novo no escotismo, apenas nove anos eu tinha amigos em vários grupos. Eles sempre comentavam comigo que a arrogância de muitos dirigentes e até de chefes no Grupo Escoteiro faziam com que alguns que entravam desistissem logo.
               Bem tinha muita coisa a pensar e raciocinar para no Domingo conversar com o "Velho" Escoteiro. Domingo sempre ia cedo para sua casa. Eu e minha esposa aprendemos que almoçar lá valia a pena. Não por economia, mas pelo cardápio da Vovó. Ela era uma cozinheira de mão cheia. E a Vovó e o "Velho" Escoteiro adoravam receber amigos. Chegamos cedo. Minha esposa era fã da Vovó e elas ficaram também horas e horas conversando. Não vou descrever aqui a bacalhoada que a Vovó fez. Ela é incrível e antes de servir trouxe para nós eu e o "Velho" deliciosos bolinhos de bacalhau. Uma cerveja no ponto acompanhou nossas conversas que nada eram conversas sobre escotismo. O "Velho" Escoteiro não tinha outro assunto.
               Depois do almoço como sempre, uma rotina de muitos e muitos anos fui para a Sala Grande e no meu banquinho de três pés tirei um cochilo, ao som de Paul Mauriat. Adorava suas músicas e agora tocava “Song for Anna”. Meu cochilo foi pequeno. O pigarro do "Velho" Escoteiro interrompeu a doce preguiça que estava possuído. – Vai dormir a tarde toda? Disse o "Velho" Escoteiro. Não disse nada. Era sempre assim. Olhei para ele. Não tinha notado, mas parecia abatido. O "Velho" Escoteiro estava com 84 anos. Eu o achava sempre o mesmo, mas na verdade não era mais. Ainda bem que não tinha nenhuma doença de velhice. O escotismo fez bem a ele. Andou muito. Viajou muito. Fez coisas impossíveis e suas histórias sempre me encheram ade júbilo. Eu gostava dele, ou melhor, amava aquele "Velho". Alem de ser meu assessor Escoteiro que eu mesmo escolhi, pois ninguém nunca o procurou para isto eu sabia o quanto aprendi com ele.
           Não dei chances para ele. Fui direto ao assunto. "Velho" Escoteiro eu li o relatório do Doutor Jeans. Ele me olhou de soslaio. – E dai? O que você entende disto? – Danado de "Velho" escoteiro. Achei que ele ia gostar do tema e me responde desta maneira. – Mas foi só um introito. Ele logo se abriu comigo. Disse que desconhecia o relatório. Nunca o viu. Durante todos estes anos juntos aos velhos escoteiros como ele, sempre bateu na mesma tecla. Ninguém nunca deu ouvido. Sempre defendendo. Sempre defendendo. Ora, ora. Defender o indefensável. – Veja bem disse ele – Um deles que não sei se é meu amigo defendeu tanto que fiquei até magoado. Disse-me muitas coisas. Que eu era contra tudo e contra todos. Nunca estou satisfeito com nada.
          - Veja bem meu amigo, sempre procurei mostrar a todos que não éramos um movimento democrático. Nunca tivemos pesquisas de nada. As decisões eram tomadas por poucos e quando ficávamos sabendo já estava tudo pronto. Se você leu bem viu o que os escotistas ou não escotistas disseram a ele. Sempre as mesmas reclamações. Até hoje se voltarem a fazer uma nova pesquisa será o mesmo. Nada mudou. Os estatutos e regimento ainda são modificados por uns poucos. Discutem em quatro paredes e colocam em votação em um congresso qualquer e todos votam. Todos? 0,5% do nosso efetivo. Parece que não querem sair. Disseram-me muitas coisas que agora não pode ficar mais que dois ou três mandatos. Não sei bem. Mas lá estão eles.
           - O Escotista que aqui esteve tentou me mostrar muitas coisas. Se nosso efetivo era alto e decresceu agora estamos crescendo. Esqueceu-se de ver o número de jovens registrados sem ônus. Este é o maior crescimento. Disse para ele que o escotismo estava sendo feito para ricos, ele discordou. Preferi não continuar. Estava me aborrecendo. Tantos anos perdidos. Se em 2007 éramos pouco menos de 0,2% da população brasileira e hoje? E ainda continuam seus desmandos do passado. Um programa feito por poucas mãos. Tiraram um novo uniforme da cartola e o esconderam. Para que isto? Até hoje tento explicar a todos que não somos um movimento uniformizado. De um cinza em 73 que se dizia social hoje virou rotina. Metade do Brasil com o caqui outra metade com o cinza. Chegam ao ponto de inventar. Muitas vezes para faturar. Faturaram uma fábula com o ultimo Jamboree. Para vender colocaram mil coisas para o uniforme. Uniforme? Bah! Amarram a ponta do lenço e colocam um chapéu com abas amarrada na cabeça e lá vai à meninada sorrindo.
          Quando comento da nossa evasão anual não existe defesa. Algumas explicações aqui e ali que não convencem. Mas cá entre nós e quem se preocupa com isto? Você se pudesse visitar durante um ano um Grupo Escoteiro por semana, iria ver a disparidade de um e outro. Onde estão os regionais? Os distritais? Os que mudaram tudo e esqueceram boa parte do bom escotismo ao ar livre se escondem em um uniforme ou traje que na maioria das vezes é colado na sede antes das reuniões. Vergonha do uniforme? O Doutor Jeans fala muito sobre isto. Mudou alguma coisa? Escotismo de balinha, escotismo de meninos bobos, escotismo de tantas coisas que só não escuta quem não anda por aí. E nossas autoridades educacionais? Nunca viveram o escotismo e vender a eles as vantagens da nossa educação Escoteira será difícil com o nosso efetivo e com nossa apresentação.
           - Olhe meu amigo, eu teria tantas coisas para falar, mas falar o que? Este Escotista que aqui esteve diz que só sei criticar esqueceu que em minha vida Escoteira do passado eu tentei tudo. Nunca consegui nada. Um estado viciado, onde uma “máfia” definia quem seria eleito e todos aplaudiam. Se você mostrasse que era oposição então! E acredito que até hoje é assim. Mentira? Eu vivi lá por anos e ele mesmo até hoje discorda de mim. Infelizmente entra ano e sai ano, os dirigentes lá estão. Firmes em seus cargos. Sempre eleitos. É fácil se reeleger. Os ditadores que o digam. Se você um dia tiver o prazer de fazer uma visita a eles, verás que a maioria se coloca em posição de superioridade tal que a gente imagina se o Escoteiro é amigo e todos e irmão dos demais escoteiros.
           – Sabe, o pior cego é aquele que não quer enxergar. Ele, este Escotista que esteve aqui ontem, sabe que nós dois e muitos outros estamos caminhando para o fim de nossas vidas. Os novos que estão chegando, havidos de cargos irão com certeza fazer mais mudanças. E um trabalho sério, compenetrado, com a participação de todos os adultos do movimento, discutindo, aprovando, votando nunca irá existir. Pesquisa de campo para saber o que pensam todos também não. Sempre tem aqueles que afoito dizem saber o que todos pensam. Assim sempre dizem os ditadores. O seu séquito segue o líder. O líder decide se é bom ou ruim.
            O "Velho" Escoteiro se calou. Senti nos seus olhos uma tristeza que nunca tinha visto. Pediu-me desculpas. Disse que iria recolher. Estava cansado, do corpo e da mente. Nunca em tempo algum em minhas visitas isto aconteceu. Fiquei preocupado, mas a Vovó me acalmou. Disse que era por uns dias. Ele não corria da luta. Iria morrer um dia, mas iria morrer lutando pelos seus ideais. Naquele domingo nem esperei o café gostoso da Vovó. Não dava. Eu mesmo estava engasgado. Ainda tinha esperança que tudo mudasse. Minha esposa já tinha ido e levado o carro. Voltei a pé. Uma brisa fresca daquele noite enluarada me pegou em cheio. Olhei para o céu e pensei - Não adianta todos os meses lá está ela, cheia, bonita, um luar encantador. Ela iria embora, voltaria no dia seguinte, no mês seguinte no ano seguinte.
            Gostaria que um luar como aquele fosse visto por todos os milhares de membros do nosso bom movimento. Olhar e ver e acreditar que cada dia tudo muda, mas sempre se volta ao normal. A mesma pose da lua, o branco ofuscante, como a dizer – Calma voces também podem chegar lá. Será? Um trovão se fez rebombar no céu. Não vi o raio. Dizem que devemos nos preocupar com o raio, mas o trovão é que assusta. Apertei o passo. Ainda tinha dois quarteirões para percorrer. Não deu tempo. A tempestade se desabou sobre mim. Deixei-a cair. Sorri uma duas várias vezes. Quem me visse sorrindo naquela cascata de pingos frios ia achar que sou louco. Nunca que seria um Escoteiro a sorrir nas dificuldades!    

A árvore quando está sendo cortada, observa com tristeza que o cabo do machado é de madeira.


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