“Todos os
dias devíamos ouvir um pouco de música, ler uma boa poesia, ver um quadro
bonito e, se possível, dizer algumas palavras sensatas”.
Johann
Goethe.
O passado de todos nós. Fasc. 083
Ladies And Gentlemans, com vocês...!
Levantei cedo. Meu corpo acostumara e aos
sábados mesmo querendo não conseguia dormir mais um pouquinho. Sábado
era
sagrado. Muita coisa para arrumar, pois eu e minha esposa trabalhávamos fora a
semana toda. Nem pensar em ficar ali na minha poltrona, curtir meu jornal,
cochilar e dar uma olhada na TV mesmo sabendo que ali não tinha nada de
interessante. Não me culpem. E ainda
tinha o Grupo Escoteiro a tarde toda o que não dispensava as noites. Bem eu não
reclamo, pois adoro o escotismo e todos os membros que são meus amigos. Minha
esposa nunca participou e sempre me apoiou. Hoje ela estava na casa de sua irmã
na mesma rua onde morávamos. O telefone tocou – Atendi. – Preciso de você
agora! – era o Velho Escoteiro. Tem de me levar ao canal 10 urgente. – Velho
tenho muita coisa para arrumar e a tarde você sabe que vou para o grupo!
Esqueça tudo. Olhe eu estava lendo meu jornal e com a TV ligada. Comecei a cochilar quando o apresentador de
um programa de auditório chamou alto: - Ladies And Gentlemans, com vocês...! Orêia
e Cotovelo! O auditório veio abaixo e eu fiquei ali em pé olhando a entrada
deles. Não havia dúvidas. Eram eles sim. Samuel e Pascoal, vulgo Orêia e
Cotovelo.
Meu amigo foi uma bela
surpresa! Havia anos que eles desapareceram da face da terra. Mas tinha alguma
coisa errada. Eu preciso ir lá não só para abraçá-los como saber o que ouve com
o Espoleta, ou melhor, Baltazar. Eram três. Agora só dois? – Não tive saída.
Sabia que ia chegar tarde à Tropa, mas eu era assistente. Liguei para minha
esposa avisando. Disse que ia levar o Velho até o Canal 10. Ele insistiu que ia
rever antigos Escoteiros. Ele me esperava na varanda de sua casa. De uniforme é
claro. Calças curtas e chapelão. No caminho não parava de falar. - Todos os
três foram da minha Patrulha. Eu era o Monitor da Leão quando eles vieram da Alcateia.
Primeiro Samuel e dois meses depois o Pascoal. Baltazar veio seis meses mais
tarde. Ainda não tinham estes apelidos. Nunca esqueci o dia. Estávamos
acampados em Santo Ângelo do Amarantes. Um grupo novo nos convidou. A cidade em
festa. Na última noite a pequena emissora de radio sem nos consultar convidou
toda a cidade para o Fogo de Conselho. Um sábado, sem cinemas e seus nove mil
habitante nada tendo o que fazer o convite foi aceito por todo mundo. À
noitinha lá foram todos para o Campinho Verde. Não longe da cidade. Acampávamos
lá com os Escoteiros do Grupo Escoteiro Santo Ângelo do Amarantes. Resolveram
dar o nome da cidade ao grupo.
Ninguém esperava aquela
multidão. Mandar embora? Cancelar o Fogo de Conselho? Nem pensar. Nosso Chefe
Nestor nem admitia pensar nisto. – Chamou os monitores dos dois grupos e o
Chefe deles. – Precisamos pensar em outro tipo de fogo. Sou todos ouvidos! – Surgiram
ideias e ideias. – Chefe eu disse – Tem três Escoteiros da Patrulha que são superengraçados.
Acho que tranquilamente podem fazer lindas apresentações e tenho certeza que
todos irão morrer de rir. – Dito e feito. Olhe, foi o melhor fogo de conselho
publico que participei. Nunca ri tanto em minha vida. Pela primeira vez
surgiram os apelidos – Palmas para Orêia Cotovelo e Espoleta! Assim foram
apresentados pela primeira vez. Sucesso absoluto. Diferente de muitos eles não
se maquiaram de palhaços. Um silêncio enorme.
O Velho Escoteiro não parava
de falar. Vi que os três amigos do passado foram muito mais que isto. Agora
vendo seus sucessos o Velho voltava no tempo e se não desse um abraço em cada
um seria o fim do mundo. – Ele continuou - Havia uma pequena elevação onde quem
se apresentava ficava a vista de todos. Orêia chegou correndo. Parou. Mãos no
rosto como a procurar no horizonte. Mamãe! Gritou. Mamãe! Repetiu. Cotovelo
chegou correndo – Que ouve meu filho? Mamãe minha Chefe disse que descendemos
dos macacos, é verdade? Eu não quero ser um macaco – Calma meu filho, calma
vamos perguntar ao seu pai, pois ele até hoje não me apresentou a família dele!
– Foi à conta, o povo caiu na gargalhada. – Espoleta entrou pensativo – Atenção
vocês! Conhecem a piada do não nem eu? O povo gritou naãao! Não mesmo? Então
nem eu. E deitava no chão rolando de rir. E ria, e ria. O melhor deles eram as
gargalhadas, deitados no chão rolando de rir não havia quem não acompanhasse.
Era contagiante. As piadas surgiram aos borbotões. Eu não sabia onde eles
tiravam todas. Depois me disseram que eram criações suas.
- Isto foi só o início,
continuou o Velho Escoteiro. Nos fogos de conselho da Tropa eles dominavam.
Quando era um fogo para o público quem os conhecia vinha de longe só para
assistir. Era um estilo novo. Sem fazer caretas. Ficavam sérios quando contavam
suas piadas e depois deitavam no chão rolando de rir. Não havia que não os
acompanhasse. Quando fomos para os seniores às três patrulhas fizeram de tudo
para eles participarem das suas. Ficamos separados pela primeira vez, mas na
mesma Tropa. O melhor deles era que as piadas eles mesmo criavam. Uma
facilidade incrível. – Chegamos ao prédio do canal 10. O Velho Escoteiro foi
entrando e barrado pelo guarda. O Velho Escoteiro é uma pessoa formidável.
Segurou na mão do guarda com esquerda, fez a saudação em posição de sentido e
disse – Sou irmão do Orêia. Mostre-me o camarim deles. O guarda não teve jeito
e mostrou.
A porta do camarim
estava aberta. Lá dentro uma legião de fotógrafos e jornalistas. Um homem alto
de terno e gravata tentava dar uma organização em tudo. O Velho Escoteiro
entrou e gritou – Reunião de Patrulha - Quem não for da Touro sai agora! –
Ninguem estava entendendo nada. Orêia e Cotovelo quando viram o Velho deram um
grande grito de olé e correram para abraçá-lo. “Meu Monitor!” disseram. “Meu
Monitor” você aqui? - Uma festa. O grandão esvaziou o camarim. Ficamos ali eu,
o Velho e os dois antigos companheiros. Conversaram mais de hora. Só então o
Velho Escoteiro me apresentou. Os dois eram ótimos. A gente não sabia se eles
estavam contando uma piada ou se estavam sérios chamando a atenção. Passava do
meio dia quando disse ao Velho Escoteiro que precisávamos ir. A reunião
começava as duas. – Ligue. Não tem celular? Cotovelo se aproximou de mim e
sério me disse – Sabe por que o português sempre deixa o celular em cima da
máquina de lavar? E ele mesmo respondeu – Para não ficar fora da área de
serviço. Deitou no chão e rolava de rir acompanhado de Orêia.
Saímos os quatro dali
e fomos para um barzinho próximo. Todos que estavam no bar saudaram
efusivamente os dois comediantes. Nunca vi o Velho Escoteiro tão alegre. Olha
que assisti a muitos amigos dele o visitando, mas ele tirar o pé da sua sala
grande e ir visitar alguém? Bem o impossível acontece. – O Velho logo perguntou
onde estava o Espoleta. Um silêncio entre os dois. Ninguem queria dizer nada. –
Velho disse Cotovelo, uma maldade aconteceu com ele. Uma grande maldade. Ele se
apaixonou! Um silêncio na mesa. Orêia continuou – Conheceu Estrela em uma
viagem nossa no interior de Minas. Ela não tirava os olhos dele. Morena
rechonchuda, bonita, lábios grossos, grandes olhos castanhos, cabelos negros
lisos até o ombro. Espoleta logo se apaixonou. Mesmo amigos nós tínhamos um
contrato. Nosso agente ficou receoso com aquela mudança em Espoleta. Não era
mais o mesmo. Só queria ficar com ela o tempo todo.
Ela encheu sua
cabeça de novas ideias. Que ele estava sendo prejudicado e podia até estar
sendo roubado. Que desfizesse o contrato e fosse sozinho apresentar seus
espetáculos pelo Brasil. – Voce não precisa deles – ela dizia. Quantas vezes
apresentou sozinho? – Tanto falou que resolvemos desfazer o contrato com ele.
Nem passou quatro meses e soubemos que ele estava internado em um hospital em
Vila Verde. Paramos dois espetáculos programados e fomos lá. Dava pena. Se você
o visse nunca iria reconhecer. Magro, ossos aparecendo na face. Cabelos sujos
vestia um calção com uma camiseta suja. O hospital não dava roupas. Tiramo-lo
dali. Fazia pena. Ele só chorava. Queria sua Estrela de volta. Um dia sumiu e
nunca mais ouvimos falar dele até o mês passado. Ele mora em um bairro simples
na cidade de Além Paraíba. Ainda não fomos lá. Mas as notícias não foram boas.
Ficamos conversando
os quatro até às cinco da tarde. Minha reunião já era. O Velho Escoteiro fez
questão que eles fossem a sua casa no domingo. Convidados para almoçar. O
domingo foi cheio. Não deu para falar em escotismo atual, pois Orêia e Cotovelo
não paravam de contar suas historias com o Velho. Para dizer a verdade o Velho
Escoteiro de 86 anos parecia ter menos de sessenta. A noite chegou eles foram
embora. – O Velho virou para mim – Preciso que me leve a Além Paraíba! – Velho!
Como? Só se for na outra semana. – Nada disto. Vamos segunda. Se quiser ligo
para seu diretor, tenho certeza que ele não vai negar lhe dar dois dias de
folga. Não vou deixar o Espoleta na miséria. – A Vovó me olhou com ar de
súplica. Não havia como dizer não. – Viajamos cedo. Não era seis da manhã e a
estrada corria sobre o meu velho Palio de guerra. Foram mais de cinco horas de
viagem. O Velho Escoteiro tinha o endereço. Não foi difícil achar. Bem
periferia. Uma casinha feita de taboas. Batemos na porta e ele não estava. –
Uma vizinha disse que só chegava à noite. Trabalhava de ajudante de pedreiro.
Ele chegou por
volta de oito da noite. O Velho como sempre de uniforme. Espoleta se assustou –
Não reconheceu o Velho, pois estava escuro – Convidou-nos para entrar. Quando
viu quem era bateu continência. “Meu Monitor”! Abraçaram-se. Risoleta ria e
chorava ao mesmo tempo. Sempre querendo saber de novidades do Velho escoteiro.
O Velho insistiu com ele para irem almoçar em um restaurante qualquer. Ele
indicaria. Espoleta ficou sério. – Monitor, eu não tenho como pagar. – Se
abraçaram com Espoleta chorando. Vamos você é nosso convidado. Conversamos até
altas horas da noite. O Velho Escoteiro insistiu que ele voltasse conosco e
porque não ser mais um com Orêia e Cotovelo? – Não sei Monitor, não sei se me
aceitam de volta. Vamos dormir aqui na cidade. Cedo viemos buscá-lo, você vai
até a obra conosco pede demissão e vamos junto de volta. Fica comigo em minha
casa até conseguir arrumar uma sua. O Velho em tempo algum perguntou por
Estrela. Ele também nada comentou.
Às cinco da
tarde de terça feira estávamos de volta. Espoleta durante toda a viagem pela
primeira vez se abriu e contou seu amor por Estrela. A Vovó foi uma perfeita
anfitriã. Difícil encontrar uma esposa como ela. Orêia e Cotovelo foram
informados por telefone. Correram a casa do Velho Escoteiro. – Espoleta
receoso. – Nem pensar amigo, somos irmãos Escoteiros. Seremos até que a morte
nos separe. Os bons tempos voltaram. Agora juraram ficar juntos para sempre. Todos
os domingos quando não havia apresentação os três se reunião na casa do Velho
Escoteiro. Eu sempre estava lá. O Velho, Samuel, Pascoal e Baltazar, vulgo
Orêia, Cotovelo e Espoleta voltaram a ser irmãos outra vez. Juraram que ninguém
os iria separar até a morte. Se isto aconteceu não sei. Receberam um convite
para excursionar na Europa e partiram. Soube pelo Velho que eles mandaram fazer
o uniforme e em cada cidade faziam questão de apertar a mão esquerda dos além-mares.
Escotismo não tem fronteiras diziam eles.
A certas coisas
no escotismo que me marcam. Eu não fui quando jovem, mas ele o escotismo vivia
em meu coração. Uma fraternidade e uma amizade que dificilmente encontramos. E
o Espetáculo continua. Orêia, Cotovelo e Espoleta cada dia mais famosos. Os
Escoteiros enchiam seus espetáculos em qualquer cidade que passavam. Eu fiquei
esperando seu retorno ao Brasil. Farei questão de convidar a Tropa que colaboro
a ir conhecê-los. Exemplos de amor e fraternidade. E como dizia a velha Kaa – “Mowgly,
não esqueça, somos irmãos de sangue. Tu e eu”.
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