Historias e estorias que não foram contadas

Historias e estorias que não foram contadas
uma foto, de um passado distante

domingo, 11 de dezembro de 2016

Tarde demais para viver.


Lendas Escoteiras.
Tarde demais para viver.

                      Tirolesa e Mico Preto estavam aboletados no centenário Pé de Jacarandá bem frente ao muro do Colégio Sacre-Coeur de Maria. Seus olhos estavam fixos no pátio do Colégio. No passado era só para meninas, mas com os novos tempos resolveram também voltar à coeducação dentro do moderno sistema de ensino. Nos fins de semana o pátio ficava livre para que o Grupo Escoteiro Domingos Jorge Velho fizesse suas reuniões com seus jovens. Sempre fora assim. Todos os sábados eles corriam até o Colégio e não tiravam os olhos da escoteirada. Madre Noêmia se encantava com os meninos e meninas que brincavam ordeiramente sob as ordens de Madre Carmelita e o Padre Juvêncio. Foi ideia dos dois fundarem o Grupo. Alguns professores se interessaram, fizeram cursos e hoje eles tinham o maior efetivo escoteiro do estado. Nunca abriram mão das normas e exigências católicas para os meninos e meninas.

                     Tirolesa e Mico Preto eram os primeiros a chegar. Viam os carrões chegando e a meninada se reunindo no pátio. Ordeiros disciplinados nunca levantavam a voz e obedeciam sem pestanejar as ordens dos chefes. – Olhe Tirolesa, um dia eu vou ser um! – Disse Mico Preto. – Ele riu. – Nunca vai entrar, observe tem algum preto com eles? Tirolesa riu também. Mas quem sabe nos aceitam, afinal temos direitos não temos? Lembra-se da professora que disse que os Direitos Humanos no protege e que o Racismo Institucional é punido por lei? – Mico Preto deu risadas. Mano, tu esqueceste que tem dois anos que não vamos mais à escola e não tem nem uma semana que uma patrulha no enquadrou?

                      Capitão Apolo sorria, pois a reunião daquela tarde foi excelente. Preparavam o acampamento de inverno e tudo foi discutido, anotado e aprovado. Viu dois meninos negros aboletados em cima do Pé de Jacarandá. – Desçam daí já!
Tirolesa e Mico Preto desceram. Nunca desobedeceram aos mais velhos. – O que estão fazendo aí? – Doutor, disse Tirolesa, estamos vendo os escoteiros, eles são bonitos demais! – Por favor, me chamem de Chefe Apolo. Eu já tinha observados vocês aí há tempos. Porque não me procuram na sede para conversar? – Chefe nem pensar. O guarda do portão disse que nos daria uma surra se fossemos até lá.

                     - Sábado que vem deixarei ordens expressas para vocês entrarem e vamos conversar. Se estiverem a fim de ser pessoas de bem vou ajudá-los. Na semana o Chefe Apolo ligou para a Madre Noêmia para autorizar a entrada deles. Ela não disse nada, mas intimamente não estava gostando daquilo. Negros aqui? Isto nunca aconteceu. Ela sempre foi fiel à raça ariana e se havia motivos de não gostar tanto do Brasil era esta mistura de raças. Agora que o Grupo Escoteiro era reconhecido pela alta sociedade, aceitar dois moleques marginais e ainda por cima negros? Não tem um Grupo Escoteiro na favela? Não autorizou a entrada e nem falou com o Capitão Apolo.

                       Mico Preto e Tirolesa passaram a semana em festa. Moravam próximo a sede dos escoteiros na Favela do Cascudo e prometeram não contar a ninguém. O pai de Tirolesa estava preso, sua mãe quase não vinha em casa, pois vivia na rua drogada. Tirolesa sempre comia na casa de Mico Preto, pois a mãe dele trabalhava de sol a sol. Saia antes do amanhecer e só voltava à noitinha. Não havia ninguém por eles por isto não foram mais aceitos na Escola mais próxima. Parecia tudo combinado. No sábado Tirolesa e Mico Preto iam contente para o “Escoteiro” sorrindo e dizendo um para o outro: - Mano! Conseguimos. Tô até pensando o que eles fazem nos acampamentos. Vai ser demais! Um carro preto parou ao lado deles. Quatro seguranças de terno e óculos escuros os pegaram pela perna e o arrastaram até o carro e sumiram na estrada do Lagarto. Desova de criminosos por parte das tais milícias de vingança.

                      No sábado o Chefe Apolo atarefado nem se lembrou deles. Na varanda do Colégio Madre Noêmia esfregava as mãos de satisfação. Os escoteiros e Escoteiras eram seu orgulho. Gente bonita, gente fina, educada, isto sim era formar jovens para o futuro. Ela sempre acreditou que ali um dia sairia o Presidente do Brasil. A mãe de Mico Preto chorou a perda do seu filho. O procurou em todos os lugares, cemitérios, no IML (Instituto Médico legal), e foi a Delegacia pedir ajuda. O delegado nem olhou para ela: - Dona faça um boletim de ocorrência. Ficou onze horas esperando. – Cor? Perguntou o moço escrevente. Escuro senhor. Escuro ou preto?


                Falar ou dizer mais o que? Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, nós humanos nunca teremos a paz!

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