Lendas
Escoteiras.
Tarde
demais para viver.
Tirolesa e Mico Preto
estavam aboletados no centenário Pé de Jacarandá bem frente ao muro do Colégio
Sacre-Coeur de Maria. Seus olhos estavam fixos no pátio do Colégio. No passado
era só para meninas, mas com os novos tempos resolveram também voltar à
coeducação dentro do moderno sistema de ensino. Nos fins de semana o pátio
ficava livre para que o Grupo Escoteiro Domingos Jorge Velho fizesse suas
reuniões com seus jovens. Sempre fora assim. Todos os sábados eles corriam até
o Colégio e não tiravam os olhos da escoteirada. Madre Noêmia se encantava com
os meninos e meninas que brincavam ordeiramente sob as ordens de Madre
Carmelita e o Padre Juvêncio. Foi ideia dos dois fundarem o Grupo. Alguns
professores se interessaram, fizeram cursos e hoje eles tinham o maior efetivo
escoteiro do estado. Nunca abriram mão das normas e exigências católicas para
os meninos e meninas.
Tirolesa e Mico Preto eram
os primeiros a chegar. Viam os carrões chegando e a meninada se reunindo no
pátio. Ordeiros disciplinados nunca levantavam a voz e obedeciam sem pestanejar
as ordens dos chefes. – Olhe Tirolesa, um dia eu vou ser um! – Disse Mico
Preto. – Ele riu. – Nunca vai entrar, observe tem algum preto com eles?
Tirolesa riu também. Mas quem sabe nos aceitam, afinal temos direitos não
temos? Lembra-se da professora que disse que os Direitos Humanos no protege e
que o Racismo Institucional é punido por lei? – Mico Preto deu risadas. Mano,
tu esqueceste que tem dois anos que não vamos mais à escola e não tem nem uma
semana que uma patrulha no enquadrou?
Capitão Apolo sorria,
pois a reunião daquela tarde foi excelente. Preparavam o acampamento de inverno
e tudo foi discutido, anotado e aprovado. Viu dois meninos negros aboletados em
cima do Pé de Jacarandá. – Desçam daí já!
Tirolesa
e Mico Preto desceram. Nunca desobedeceram aos mais velhos. – O que estão
fazendo aí? – Doutor, disse Tirolesa, estamos vendo os escoteiros, eles são
bonitos demais! – Por favor, me chamem de Chefe Apolo. Eu já tinha observados
vocês aí há tempos. Porque não me procuram na sede para conversar? – Chefe nem
pensar. O guarda do portão disse que nos daria uma surra se fossemos até lá.
- Sábado que vem deixarei ordens
expressas para vocês entrarem e vamos conversar. Se estiverem a fim de ser
pessoas de bem vou ajudá-los. Na semana o Chefe Apolo ligou para a Madre Noêmia
para autorizar a entrada deles. Ela não disse nada, mas intimamente não estava
gostando daquilo. Negros aqui? Isto nunca aconteceu. Ela sempre foi fiel à raça
ariana e se havia motivos de não gostar tanto do Brasil era esta mistura de
raças. Agora que o Grupo Escoteiro era reconhecido pela alta sociedade, aceitar
dois moleques marginais e ainda por cima negros? Não tem um Grupo Escoteiro na
favela? Não autorizou a entrada e nem falou com o Capitão Apolo.
Mico Preto e Tirolesa
passaram a semana em festa. Moravam próximo a sede dos escoteiros na Favela do
Cascudo e prometeram não contar a ninguém. O pai de Tirolesa estava preso, sua
mãe quase não vinha em casa, pois vivia na rua drogada. Tirolesa sempre comia
na casa de Mico Preto, pois a mãe dele trabalhava de sol a sol. Saia antes do
amanhecer e só voltava à noitinha. Não havia ninguém por eles por isto não
foram mais aceitos na Escola mais próxima. Parecia tudo combinado. No sábado Tirolesa
e Mico Preto iam contente para o “Escoteiro” sorrindo e dizendo um para o
outro: - Mano! Conseguimos. Tô até pensando o que eles fazem nos acampamentos.
Vai ser demais! Um carro preto parou ao lado deles. Quatro seguranças de terno
e óculos escuros os pegaram pela perna e o arrastaram até o carro e sumiram na
estrada do Lagarto. Desova de criminosos por parte das tais milícias de
vingança.
No sábado o Chefe Apolo
atarefado nem se lembrou deles. Na varanda do Colégio Madre Noêmia esfregava as
mãos de satisfação. Os escoteiros e Escoteiras eram seu orgulho. Gente bonita,
gente fina, educada, isto sim era formar jovens para o futuro. Ela sempre
acreditou que ali um dia sairia o Presidente do Brasil. A mãe de Mico Preto
chorou a perda do seu filho. O procurou em todos os lugares, cemitérios, no IML
(Instituto Médico legal), e foi a Delegacia pedir ajuda. O delegado nem olhou
para ela: - Dona faça um boletim de ocorrência. Ficou onze horas esperando. –
Cor? Perguntou o moço escrevente. Escuro senhor. Escuro ou preto?
Falar
ou dizer mais o que? Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho
dos olhos, nós humanos nunca teremos a paz!
Nenhum comentário:
Postar um comentário
obrigado pelos seus comentários