Muito Obrigado

Nelinho.
Obrigado Brasil! Fasc.
085.
O Velho
Escoteiro estava na porta me esperando. Olhou para o relógio e olhou para mim –
Trinta segundos atrasado falou – Olhei no meu relógio. Estava no horário.
Melhor não discutir, pois o Velho Escoteiro adorava uma boa discussão. Como
sempre impecavelmente uniformizado. Desci e abri a porta do carro para ele.
Agora usava uma bengala. A idade pesando e ele ainda insistindo em fazer
escotismo. - Você vai aonde? Perguntou. Velho, eu disse - Não combinamos de
visitar alguns grupos Escoteiros neste mês? Olhe que não foi fácil convencer a
tropa a ser dirigida pelo Monitor mais antigo. – Caramba, e os seus
assistentes? – Velho são dois e todos eles tem provas na faculdade, não poderão
ir. – E este uniforme? – Olhei para mim. Estava com o azul mescla e a calça
comprida – Não sabia que era para ir com o de campo Velho Escoteiro.
- Ele ficou
calado por alguns minutos e disse – Sabe meu amigo, se estamos com os jovens
devemos ficar como eles. Hoje está acontecendo muito os chefes dirigirem suas
tropas com outro uniforme. É um paradoxo, a tropa de caqui e o Chefe de azul
mescla ou então a tropa de azul mescla e ele de caqui. E isto piora quando o
Chefe quer aparecer e arranja outros badulaques para pendurar. Ele esquece que
ali é um irmão mais Velho, um amigo simpático e quem deve se sobressair são os
jovens não ele. – Não disse nada. Eu sabia disto. Não vou generalizar, mas tem
muito Chefe por aí que esquece que a figura principal são os Escoteiros e não
ele. Naquele sábado iriamos visitar o Grupo Escoteiro Andrômeda, não muito
longe. Ia ligar avisando e ele pediu que não – Conheci um Chefe de lá, fez um
curso comigo há muitos anos. Devo a ele uma visita. – Pensei o porquê o Velho
resolveu visitar trinta anos depois. Será que tal Chefe ainda existiria?
Chegamos as
duas e vinte e cinco. Todos já estavam formados em frente o Mastro da Bandeira.
Todos não, alguns meninos insistiam em terminar a partida de futebol que
estavam jogando. – Espere Chefe! Já estamos terminando. Pensei comigo o que o
Velho Escoteiro estaria pensando. No mínimo que ali horários não são levados a
sério e não tem importância. Primeiro o futebol e depois o cerimonial. Os
outros que não jogavam bola que esperem. Não eram muitos, quando formaram vi
que devia ser três patrulhas incompletas. Muitos meninos e meninas com a camisa
solta. O Chefe era um chefão. Enorme, óculos escuros, um lindo boné do Airton
Sena e falar do seu uniforme é melhor calar. O amigo do Velho Escoteiro não era
mais do grupo, tinha saído há muitos anos. O Velho foi bem recebido. O Chefão
fez questão de fazer um elogio a ele que demorou mais de dez minutos no
cerimonial. Ele agradeceu e disse que poderiam continuar sua programação, ele
estava ali só para uma visita de cortesia.
Menos de
quarenta minutos e o Velho Escoteiro me chamou para ir embora. Estava
decepcionado com tudo que viu. Da Alcateia a tropa sênior. Em nenhum momento
sentiu que o escotismo ali estava sendo praticado no método que nos ensinou o
fundador. A Alcateia só canções e folguedos infantis, os lobinhos dispersos,
não prestavam atenção, alguns deles com pedrinhas na mão jogavam em seus
companheiros. Os seniores faziam um jogo e à medida que iam saindo os pares de
namoricos se formavam. Na tropa não eram mais de doze. Três patrulhas de três
ou quatro cada uma. O chefão explicou que aquele dia faltaram muitos. O Velho
Escoteiro perguntou pelo diretor técnico. – Não veio hoje, ele só aparece aqui
uma vez por mês. Se o senhor vier outro dia mando avisá-lo e olhe temos mais
oitos chefes que também não vieram hoje. Sei que eles ficariam orgulhosos em
conhecê-lo e apertar sua mão.
No retorno o
Velho Escoteiro não disse nada. Não havia o que dizer e ambos sabíamos que
grupos assim têm vários por aí. Queria perguntar a ele onde andaria o distrital
e seus assistentes. O deixei na porta de casa e não entrei. No dia seguinte
domingo era rotina almoçar com ele e dar um abraço na Vovó. Eu tinha muito que
fazer em minha casa, liguei para ele e disse que só iria à tarde. Agradecia o
almoço. Por volta das quatro da tarde lá estava a trocar ideias com ele. Em
nenhum momento comentou sobre a visita ao Grupo Escoteiro Andrômeda. Não havia
o que comentar, pois ele sabia o que eu pensava. Quantas e quantas vezes
falamos sobre isto.
No sábado seguinte
cheguei a sua casa as duas em ponto. Ele na porta a me esperar e olhando para o
relógio – Um minuto adiantando disse! – Se fosse outro ia mandá-lo para o
inferno, mas era o Velho Escoteiro. Horário para ele é sagrado. Desta vez
iriamos um pouco mais longe. Iriamos visitar o Grupo Escoteiro Pico da Neblina.
Resolvi pegar a Rodovia 280 um caminho mais curto. – Não conheço ninguém lá,
disse. Convidaram-me por e-mail, insistiram em me conhecer. Quer saber o que
fiquei pensando esta semana? Não? Então me responda, conhece alguma organização
onde o Voluntário paga para ajudar? – Ele sorriu. Já tinha pensando nisto
também e olhe que o grupo que ajudava tinha boa estrutura. Eu sabia que a
maioria dos grupos não andavam bem das pernas. Poucos jovens pagavam a
mensalidade. Os chefes estavam sempre ali para colaborar. Conheci grupos que
tinham parte da receita através dos seus voluntários.
Chegamos faltando
dez minutos para o cerimonial. O Velho Escoteiro foi levado para um lugar de
honra. Saudaram-no com uma bonita palma escoteira. Parecia que ensaiaram por
várias reuniões. Ele não gostava disto. Quatro Escoteiros e duas escoteira
chegaram correndo. Estavam atrasados. – Desculpe Chefe, viemos a pé, pois só
hoje ficamos sabendo que o senhor convocou todo mundo para receber um tal de
chefão do escotismo. Permite que entremos em forma? – Ri para o Velho
Escoteiro. Ele não falou nada. A reunião foi um brinco. Quatro matilhas de
cinco lobos e lobas cada uma. Quatro patrulhas de Escoteiros e escoteiras, cada
uma com seis. Duas de seniores e guias. Fizeram belos jogos. Os jovens parecem
super disciplinados. Em hora nenhuma vi os monitores decidindo ou mesmo em
reuniões nos seus cantos de patrulha. Vi que a Alcateia parecia cansada eles
participavam, mas pareciam não estar muito motivados.
Meia hora antes de
terminar fomos levados a um salão onde varias mães e pais
fizeram uma bela mesa
de quitutes e doces. Quando chegamos todos eles vieram cumprimentar o Velho
Escoteiro. – Então é o senhor? Disse um. – Pensei que era mais gordo disse
outra. – Custei a trazer meu menino, ele tinha saído, mas o Chefe quase chorou
para trazer ele hoje. Disse que o senhor ficaria impressionado. – O Velho
Escoteiro estava carrancudo. Não disse mais nada, comeu dois salgados e um doce
e disse que precisar retirar-se. Hora de seus remédios. No retorno ele calado.
Antes de entrar na sua rua ele me perguntou – Dá para imaginar quantos estão
participando ativamente? – Sei não Velho respondi. – Se tivesse olhado com mais
atenção veria que o Chefe da tropa é um desconhecido para os meninos. Tenho
certeza que quem dirige é o Diretor Técnico. Na Alcateia tinha quatro
assistentes, mas só uma era frequente. - Não disse nada. Não havia o que dizer.
Porque fizeram isto? Perguntei-me. Sem resposta.
No domingo eu
e minha esposa chegamos cedo à casa do Velho escoteiro. Um almoço como sempre
caprichado como só a Vovó sabia fazer. A rotina de uma soneca e a tarde falar
do escotismo. Não havia outro assunto entre nós. – Sabe meu amigo, disse ele,
temos mais ou menos cinco mil e quinhentas cidades no Brasil. Vamos fazer uma
conta? – A última estatística da UEB diz que temos mil e cem grupos no Brasil.
Se cada cidade tivesse um Grupo Escoteiro ainda teríamos outras quatro mil e
quatrocentas sem Grupo Escoteiro, e olhe que nas cidades com mais de quinhentos
mil habitantes estão grande parte destes Grupos Escoteiros. Dizem que em dez
anos aumentamos dez mil membros. Nestes dez anos tivemos um crescimento de
sessenta Grupos Escoteiros. Está me acompanhando? – Um pouco Velho, mas já estou
entendendo. Pois é pegue uma cidade com população de quinhentos mil habitantes
com cinco grupos, e olhe nem sempre isto acontece. Quantos membros Escoteiros
seriamos? Quem sabe uns quatrocentos? Quinhentos? Compare com a população da
cidade. Estamos mesmo crescendo?
Na semana
seguinte aquele tema não me saiu da cabeça. Se temos uma população de duzentos
mil habitantes e a cada hora nasce 320 bebês onde será que estamos crescendo?
77.000 mil? Ano que vem 90.000? Nossa minha cabeça está esquentando.
Voluntários pagando para ajudar. Crescimento pífio, e nossos dirigentes ficam a
bater no peito que estamos chegando lá? Lá onde? Pegue os 21.000 lobinhos, os
24 mil Escoteiros, os 9.200 seniores, os 3.000 pioneiros e os dezoito mil
chefes e faça a soma. Seria 75.000 e pouco? Então somos uma cidade das mais
5.500 que existem em nosso país. Muito? Minha cabeça estava cheia de números.
Se fosse perguntar na internet ela acho eu poderia explodir.
No terceiro
sábado cheguei à casa do Velho Escoteiro e ele sorriu. – Supimpa! Na mosca duas
horas em ponto. Custou eim? Desta vez iriamos a um grupo que eu já conhecia.
Tinha lá alguns chefes meus amigos. O Grupo Escoteiro Liberdade. Poucos como
ele em nosso Brasil. Fundado em 1930. Antiguíssimo. Quantos assim como ele? Se
contava a dedo. Nem descemos do automóvel e um lobinho e um Escoteiro nos guiou
até a sede. – O Diretor Técnico já era conhecido do Velho Escoteiro. Lá estava
ele e mais cinco membros da diretoria. O Velho sabia que não estavam ali para
recebê-lo. Era norma estar presente todos os sábados. Era um grupo de tradição.
Quase todos escotistas portadores da Insígnia de Madeira. Lembro que o Velho
Escoteiro um dia me disse que hoje em dia ele não sabe se os novos IM tem
condições de liderar uma sessão como no passado – Sabe meu amigo – ele disse -
Na maioria dos estados o questionário que alguns dizem não existem mais, nem
toca no tema do sistema de Patrulhas. Mas se você não souber o que é o SIGUE
está perdido, nunca será um IM.
Nem preciso dizer sobre as reuniões. O
que mais agradou o Velho foi à tradição. Duas tropas uma masculina e outra
feminina. Três Alcateia. Duas masculinas e outra feminina. Três patrulhas
sêniores e duas guias. O mesmo cerimonial, a mesma presença das sessões, a
Tropa de Serviço, A bandeirola de honra para a melhor tropa do mês. O Velho
Escoteiro e o diretor técnico ficaram conversando por horas. Foi preciso que eu
disse a ele que estava passando das sete da noite. – Mas já? O Diretor Técnico
está nos convidando para um coquetel na casa de um pai escoteiro. Eles fazem
isto sempre no segundo sábado do mês. Cada um leva salgados, doces e bebidas. –
Velho, me desculpe, fica para outro dia. Prometi a minha esposa levá-la a um
espetáculo que estava acontecendo no teatro Municipal.
No domingo
após o almoço em sua casa e após o cochilo quase não falamos de escotismo. –
Acabou? Perguntei – Acabou o que? – O seu périplo de visitas a grupos. – Ainda
não, mas vamos dar uma folga. Afinal você precisa dar mais atenção a sua tropa.
Seu Monitor mais antigo deve estar sentindo a falta do chefe. – Onde está sua
responsabilidade? Não disse nada, não havia o que dizer. O Velho Escoteiro
começou a contar uma história que não conhecia. Em 1966 sua empresa estava
abrindo uma estrada no estado do Pará e ele tinha sido aprisionado pelos índios
Tupinambás. Enquanto ele narrava eu fazia tudo para prestar atenção. Um sono
enorme. Pudera, a Vovó no almoço serviu um belo de um dourado cravejado de
grandes camarões vermelhos e azeitonas pretas. Um arroz soltinho, um feijão
inteiro com postas de costelinhas de porco no ponto, e uma travessa cheia de
choriços doces e salgados. Me empanturrei! Fazer o que? Senti a mão da Vovó me
acordando. Um café meu amigo?
Agradeço ao destino por ter-me feito
nascer pobre. A pobreza foi-me uma amiga benfazeja; ensinou-me o preço
verdadeiro dos bens úteis à vida, que sem ela não teria conhecido. Evitando-me
o peso do luxo, devotou-me à arte e à beleza.
Anatole France