Historias e estorias que não foram contadas

Historias e estorias que não foram contadas
uma foto, de um passado distante

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Obrigado Brasil! Fasc. 085.

Muito Obrigado
 
Pela luz que irradia em minha vida Pela fé inquebrantável no coração Pelas amizades que tenho tão queridas Pelo amor, a paz, a emoção Pelo desencanto que me leva ao crescimento Pela noite que durou só um momento Pelo dia feito longo em agonia Pelo beijo eterno que não sai do pensamento Por todos os dons que pela eternidade são teus E que agora por teu querer fizeste meus... Obrigado!
Nelinho.

Obrigado Brasil! Fasc. 085.

              O Velho Escoteiro estava na porta me esperando. Olhou para o relógio e olhou para mim – Trinta segundos atrasado falou – Olhei no meu relógio. Estava no horário. Melhor não discutir, pois o Velho Escoteiro adorava uma boa discussão. Como sempre impecavelmente uniformizado. Desci e abri a porta do carro para ele. Agora usava uma bengala. A idade pesando e ele ainda insistindo em fazer escotismo. - Você vai aonde? Perguntou. Velho, eu disse - Não combinamos de visitar alguns grupos Escoteiros neste mês? Olhe que não foi fácil convencer a tropa a ser dirigida pelo Monitor mais antigo. – Caramba, e os seus assistentes? – Velho são dois e todos eles tem provas na faculdade, não poderão ir. – E este uniforme? – Olhei para mim. Estava com o azul mescla e a calça comprida – Não sabia que era para ir com o de campo Velho Escoteiro.

             - Ele ficou calado por alguns minutos e disse – Sabe meu amigo, se estamos com os jovens devemos ficar como eles. Hoje está acontecendo muito os chefes dirigirem suas tropas com outro uniforme. É um paradoxo, a tropa de caqui e o Chefe de azul mescla ou então a tropa de azul mescla e ele de caqui. E isto piora quando o Chefe quer aparecer e arranja outros badulaques para pendurar. Ele esquece que ali é um irmão mais Velho, um amigo simpático e quem deve se sobressair são os jovens não ele. – Não disse nada. Eu sabia disto. Não vou generalizar, mas tem muito Chefe por aí que esquece que a figura principal são os Escoteiros e não ele. Naquele sábado iriamos visitar o Grupo Escoteiro Andrômeda, não muito longe. Ia ligar avisando e ele pediu que não – Conheci um Chefe de lá, fez um curso comigo há muitos anos. Devo a ele uma visita. – Pensei o porquê o Velho resolveu visitar trinta anos depois. Será que tal Chefe ainda existiria?

               Chegamos as duas e vinte e cinco. Todos já estavam formados em frente o Mastro da Bandeira. Todos não, alguns meninos insistiam em terminar a partida de futebol que estavam jogando. – Espere Chefe! Já estamos terminando. Pensei comigo o que o Velho Escoteiro estaria pensando. No mínimo que ali horários não são levados a sério e não tem importância. Primeiro o futebol e depois o cerimonial. Os outros que não jogavam bola que esperem. Não eram muitos, quando formaram vi que devia ser três patrulhas incompletas. Muitos meninos e meninas com a camisa solta. O Chefe era um chefão. Enorme, óculos escuros, um lindo boné do Airton Sena e falar do seu uniforme é melhor calar. O amigo do Velho Escoteiro não era mais do grupo, tinha saído há muitos anos. O Velho foi bem recebido. O Chefão fez questão de fazer um elogio a ele que demorou mais de dez minutos no cerimonial. Ele agradeceu e disse que poderiam continuar sua programação, ele estava ali só para uma visita de cortesia.

                Menos de quarenta minutos e o Velho Escoteiro me chamou para ir embora. Estava decepcionado com tudo que viu. Da Alcateia a tropa sênior. Em nenhum momento sentiu que o escotismo ali estava sendo praticado no método que nos ensinou o fundador. A Alcateia só canções e folguedos infantis, os lobinhos dispersos, não prestavam atenção, alguns deles com pedrinhas na mão jogavam em seus companheiros. Os seniores faziam um jogo e à medida que iam saindo os pares de namoricos se formavam. Na tropa não eram mais de doze. Três patrulhas de três ou quatro cada uma. O chefão explicou que aquele dia faltaram muitos. O Velho Escoteiro perguntou pelo diretor técnico. – Não veio hoje, ele só aparece aqui uma vez por mês. Se o senhor vier outro dia mando avisá-lo e olhe temos mais oitos chefes que também não vieram hoje. Sei que eles ficariam orgulhosos em conhecê-lo e apertar sua mão.

          No retorno o Velho Escoteiro não disse nada. Não havia o que dizer e ambos sabíamos que grupos assim têm vários por aí. Queria perguntar a ele onde andaria o distrital e seus assistentes. O deixei na porta de casa e não entrei. No dia seguinte domingo era rotina almoçar com ele e dar um abraço na Vovó. Eu tinha muito que fazer em minha casa, liguei para ele e disse que só iria à tarde. Agradecia o almoço. Por volta das quatro da tarde lá estava a trocar ideias com ele. Em nenhum momento comentou sobre a visita ao Grupo Escoteiro Andrômeda. Não havia o que comentar, pois ele sabia o que eu pensava. Quantas e quantas vezes falamos sobre isto.

       No sábado seguinte cheguei a sua casa as duas em ponto. Ele na porta a me esperar e olhando para o relógio – Um minuto adiantando disse! – Se fosse outro ia mandá-lo para o inferno, mas era o Velho Escoteiro. Horário para ele é sagrado. Desta vez iriamos um pouco mais longe. Iriamos visitar o Grupo Escoteiro Pico da Neblina. Resolvi pegar a Rodovia 280 um caminho mais curto. – Não conheço ninguém lá, disse. Convidaram-me por e-mail, insistiram em me conhecer. Quer saber o que fiquei pensando esta semana? Não? Então me responda, conhece alguma organização onde o Voluntário paga para ajudar? – Ele sorriu. Já tinha pensando nisto também e olhe que o grupo que ajudava tinha boa estrutura. Eu sabia que a maioria dos grupos não andavam bem das pernas. Poucos jovens pagavam a mensalidade. Os chefes estavam sempre ali para colaborar. Conheci grupos que tinham parte da receita através dos seus voluntários.

        Chegamos faltando dez minutos para o cerimonial. O Velho Escoteiro foi levado para um lugar de honra. Saudaram-no com uma bonita palma escoteira. Parecia que ensaiaram por várias reuniões. Ele não gostava disto. Quatro Escoteiros e duas escoteira chegaram correndo. Estavam atrasados. – Desculpe Chefe, viemos a pé, pois só hoje ficamos sabendo que o senhor convocou todo mundo para receber um tal de chefão do escotismo. Permite que entremos em forma? – Ri para o Velho Escoteiro. Ele não falou nada. A reunião foi um brinco. Quatro matilhas de cinco lobos e lobas cada uma. Quatro patrulhas de Escoteiros e escoteiras, cada uma com seis. Duas de seniores e guias. Fizeram belos jogos. Os jovens parecem super disciplinados. Em hora nenhuma vi os monitores decidindo ou mesmo em reuniões nos seus cantos de patrulha. Vi que a Alcateia parecia cansada eles participavam, mas pareciam não estar muito motivados.

        Meia hora antes de terminar fomos levados a um salão onde varias mães e pais
fizeram uma bela mesa de quitutes e doces. Quando chegamos todos eles vieram cumprimentar o Velho Escoteiro. – Então é o senhor? Disse um. – Pensei que era mais gordo disse outra. – Custei a trazer meu menino, ele tinha saído, mas o Chefe quase chorou para trazer ele hoje. Disse que o senhor ficaria impressionado. – O Velho Escoteiro estava carrancudo. Não disse mais nada, comeu dois salgados e um doce e disse que precisar retirar-se. Hora de seus remédios. No retorno ele calado. Antes de entrar na sua rua ele me perguntou – Dá para imaginar quantos estão participando ativamente? – Sei não Velho respondi. – Se tivesse olhado com mais atenção veria que o Chefe da tropa é um desconhecido para os meninos. Tenho certeza que quem dirige é o Diretor Técnico. Na Alcateia tinha quatro assistentes, mas só uma era frequente. - Não disse nada. Não havia o que dizer. Porque fizeram isto? Perguntei-me. Sem resposta.

             No domingo eu e minha esposa chegamos cedo à casa do Velho escoteiro. Um almoço como sempre caprichado como só a Vovó sabia fazer. A rotina de uma soneca e a tarde falar do escotismo. Não havia outro assunto entre nós. – Sabe meu amigo, disse ele, temos mais ou menos cinco mil e quinhentas cidades no Brasil. Vamos fazer uma conta? – A última estatística da UEB diz que temos mil e cem grupos no Brasil. Se cada cidade tivesse um Grupo Escoteiro ainda teríamos outras quatro mil e quatrocentas sem Grupo Escoteiro, e olhe que nas cidades com mais de quinhentos mil habitantes estão grande parte destes Grupos Escoteiros. Dizem que em dez anos aumentamos dez mil membros. Nestes dez anos tivemos um crescimento de sessenta Grupos Escoteiros. Está me acompanhando? – Um pouco Velho, mas já estou entendendo. Pois é pegue uma cidade com população de quinhentos mil habitantes com cinco grupos, e olhe nem sempre isto acontece. Quantos membros Escoteiros seriamos? Quem sabe uns quatrocentos? Quinhentos? Compare com a população da cidade. Estamos mesmo crescendo?

            Na semana seguinte aquele tema não me saiu da cabeça. Se temos uma população de duzentos mil habitantes e a cada hora nasce 320 bebês onde será que estamos crescendo? 77.000 mil? Ano que vem 90.000? Nossa minha cabeça está esquentando. Voluntários pagando para ajudar. Crescimento pífio, e nossos dirigentes ficam a bater no peito que estamos chegando lá? Lá onde? Pegue os 21.000 lobinhos, os 24 mil Escoteiros, os 9.200 seniores, os 3.000 pioneiros e os dezoito mil chefes e faça a soma. Seria 75.000 e pouco? Então somos uma cidade das mais 5.500 que existem em nosso país. Muito? Minha cabeça estava cheia de números. Se fosse perguntar na internet ela acho eu poderia explodir.

            No terceiro sábado cheguei à casa do Velho Escoteiro e ele sorriu. – Supimpa! Na mosca duas horas em ponto. Custou eim? Desta vez iriamos a um grupo que eu já conhecia. Tinha lá alguns chefes meus amigos. O Grupo Escoteiro Liberdade. Poucos como ele em nosso Brasil. Fundado em 1930. Antiguíssimo. Quantos assim como ele? Se contava a dedo. Nem descemos do automóvel e um lobinho e um Escoteiro nos guiou até a sede. – O Diretor Técnico já era conhecido do Velho Escoteiro. Lá estava ele e mais cinco membros da diretoria. O Velho sabia que não estavam ali para recebê-lo. Era norma estar presente todos os sábados. Era um grupo de tradição. Quase todos escotistas portadores da Insígnia de Madeira. Lembro que o Velho Escoteiro um dia me disse que hoje em dia ele não sabe se os novos IM tem condições de liderar uma sessão como no passado – Sabe meu amigo – ele disse - Na maioria dos estados o questionário que alguns dizem não existem mais, nem toca no tema do sistema de Patrulhas. Mas se você não souber o que é o SIGUE está perdido, nunca será um IM.

             Nem preciso dizer sobre as reuniões. O que mais agradou o Velho foi à tradição. Duas tropas uma masculina e outra feminina. Três Alcateia. Duas masculinas e outra feminina. Três patrulhas sêniores e duas guias. O mesmo cerimonial, a mesma presença das sessões, a Tropa de Serviço, A bandeirola de honra para a melhor tropa do mês. O Velho Escoteiro e o diretor técnico ficaram conversando por horas. Foi preciso que eu disse a ele que estava passando das sete da noite. – Mas já? O Diretor Técnico está nos convidando para um coquetel na casa de um pai escoteiro. Eles fazem isto sempre no segundo sábado do mês. Cada um leva salgados, doces e bebidas. – Velho, me desculpe, fica para outro dia. Prometi a minha esposa levá-la a um espetáculo que estava acontecendo no teatro Municipal.

             No domingo após o almoço em sua casa e após o cochilo quase não falamos de escotismo. – Acabou? Perguntei – Acabou o que? – O seu périplo de visitas a grupos. – Ainda não, mas vamos dar uma folga. Afinal você precisa dar mais atenção a sua tropa. Seu Monitor mais antigo deve estar sentindo a falta do chefe. – Onde está sua responsabilidade? Não disse nada, não havia o que dizer. O Velho Escoteiro começou a contar uma história que não conhecia. Em 1966 sua empresa estava abrindo uma estrada no estado do Pará e ele tinha sido aprisionado pelos índios Tupinambás. Enquanto ele narrava eu fazia tudo para prestar atenção. Um sono enorme. Pudera, a Vovó no almoço serviu um belo de um dourado cravejado de grandes camarões vermelhos e azeitonas pretas. Um arroz soltinho, um feijão inteiro com postas de costelinhas de porco no ponto, e uma travessa cheia de choriços doces e salgados. Me empanturrei! Fazer o que? Senti a mão da Vovó me acordando. Um café meu amigo? 

 

Agradeço ao destino por ter-me feito nascer pobre. A pobreza foi-me uma amiga benfazeja; ensinou-me o preço verdadeiro dos bens úteis à vida, que sem ela não teria conhecido. Evitando-me o peso do luxo, devotou-me à arte e à beleza.

Anatole France