As
memórias do Chefe Bill Wagryth
Meu amor
mora nas estrelas.
Lá onde mora o amor
não há dor, não há tristeza,
lá tem cor, lá tem riqueza,
lá tem bem, lá tem nobreza.
Lá onde mora a amizade
não há rancor, nem falsidade,
lá tem respeito, lá tem verdade,
lá tem afeto, lá tem cumplicidade.
Saulo Fernandes
O dia
ainda estava claro. A primavera, dizem os poetas trás o perfume das flores, os
pássaros cantam nas arvores mais afinados, as matas os bosques, às campinas
ficam mais verdes e os rios correm para o mar sorrindo. Eu sempre gostei da
primavera. E quando a brisa daquela tarde gostosa e sonolenta soprava em nossa
face era como se estivemos vivendo uma tarde em um acampamento qualquer. Eu e o
"Velho" Escoteiro estávamos sentados na varanda de sua casa, e de lá
podíamos avistar o morro das Bermudas, que graças a Deus foi mantido como uma
reserva florestal e não sucateada por alguma imobiliária. Eu almocei na casa do
Velho Escoteiro e sabia que igual à Vovó na cozinha pode ter muitas, mas superior
não.
O
"Velho" como sempre nestas tardes, como a chamar a atenção dos jovens
que brincavam seus folguedos na calçada em frente, colocou o seu velho LP do
Trio Irakitan a repicar gostosamente várias canções escoteiras na sua vitrola
já gasta com o tempo. Ficamos assim sem conversar, mas vi que o
"Velho" Escoteiro queria me contar alguma de suas histórias ou então
das suas eternas discordâncias com nossos dirigentes, uma luta de anos e anos.
– Olhe, começou – Acho que nunca comentei com você. Existem tantas coisas que
aconteceram em minha vida Escoteira que precisávamos ficar juntos uma
eternidade para lhe contar tudo. Acordei esta madrugada lembrando-me do meu
querido amigo o Chefe Bill Wagryth. Já falei dele com você? Não? Bem vamos lá.
Bill Wagryth entrou como Escoteiro na Patrulha Puma. Eu estava na Touro. Mesmo
assim como morávamos na mesma rua sempre íamos e voltávamos do grupo juntos.
Nasceu daí uma bela amizade.
Fomos
juntos para os seniores, e nos pioneiros ele ficou pouco tempo. Como tinha
feito um concurso para a Aeronáutica, durante quatro anos ficou na Academia da
Força Aérea, em Pirassununga. Víamo-nos nas férias, e até fizemos um
acampamento juntos a convite de escoteiros da Costa Rica, no Sopé da
Cordilheira Central, em Guanacaste e Tilarán. Foi um acampamento que marcou
muito. Quando se formou como Aspirante foi logo promovido a Segundo Tenente.
Quase não tinha folga, mas sempre sobrava um tempinho para tomarmos uns chopes,
uma ou três noites de campo ou a explorar alguma das mais belas grutas de
Minas, e até mesmo participar do Sétimo Jamboree Mundial em Bad Ischl, na
Áustria. Nossa amizade permaneceu firme e logo ele foi promovido a Tenente. Foi
nesta época que ele foi designado para servir na capital e transferido para o
gerenciamento do Tráfego Aéreo do aeroporto Catorze Bis na capital, o que lhe
tomava muito tempo.
Um dia
ele me convidou para conhecer seu trabalho e achei fora de série. A cada minuto
alguém suava com algum problema. Alí todos trabalhavam com o estresse a flor da
pele. Não era nada fácil. A vida de centenas de aeronaves estavam nas mãos
deles. Ele me convidou para um cafezinho no bar do aeroporto e lá fomos nós.
Foi então que me contou sua história. Incrível história. Se eu não soubesse que
era um Escoteiro dos bons diria que ou estava estressado demais ou um tremendo
mentiroso. – assim começou sua narrativa - Foi em um dia de semana qualquer. Aeronaves
descendo e subindo. Na minha linha ouvi uma voz feminina com um sotaque russo.
Pedia para desobstruir toda a pista número quatro. Eles iam descer em quatro
minutos. Pedi para se identificarem. Não responderam. No radar vi que era uma
nave gigantesca.
Não
tive saída. A pista foi interditada para eles. Não vi direito a nave. Ela
aparecia brilhante quando alguma nuvem no céu cobria o aeroporto. Mesmo assim
com dificuldade. A maior parte do tempo estava invisível. Parecia ser um enorme
charuto. Imenso. Mais de quarenta metros de altura e mais de cento e quarenta
metros de comprimento. – Eu prestava a maior atenção ao "Velho"
Escoteiro. Uma história que parece ele tinha tirado do fundo do baú. Eu gostava
destas historias, se eu acreditava eram outros quinhentos. – Ele continuou – Meu
amigo Bill engasgado, disse que ouviu a voz feminina de antes – Precisamos nos
falar. Preciso explicar. Pode ser em algum lugar reservado? Disse que seria na
sala do Brigadeiro Duarte. Ele ainda não sabia do que estava acontecendo. Fui
até lá. Expliquei. – Está doido? Por Deus brigadeiro é a mais pura verdade,
aqui não é lugar para este tipo de brincadeira.
A voz
parecia flutuar e disse – Estou me materializando na sala. Não façam nada. Nem
um gesto. Ela apareceu ao vivo e a cores. Uma linda mulher, cabelos loiros de
olhos verdes esmeralda com um uniforme estranho. Olhou-me e na sua voz fanhosa
explicou. – Sei que vai ser difícil acreditarem, mas somos de um planeta
distante, que pelas suas medidas fica a mais de cem milhões de anos luz da
terra. Nosso planeta irá se desintegrar em alguns anos. Nossos cientistas
descobriram um parecido com o nosso na Constelação de Centauro, que vocês
chamam de Alpha Centauro por ser a estrela mais brilhante no céu em
determinados meses do ano. Estamos
alguns séculos avançados em relação ao seu planeta. Somos orientados a não
interferir no crescimento de vocês e de outros povos que habitam não só a sua
galáxia como a de milhões que conseguimos descobrir. Nossa nave estelar pode
viajar grandes distâncias entre sistemas solares. A velocidade da luz para nós
não tem segredos. Podemos viajar mais de vinte vezes a velocidade da luz.
-
Continuou o Chefe Bill. – Meu nome aqui para vocês será Sheyla. Minha aparecia
normal não é esta. Mas precisava adaptar uma nova vestimenta humana para
podermos conversar. Ninguém poderá saber que estamos aqui. Um pequeno problema em
nosso motor de dobra não foi possível reparar no espaço e nos obrigou a descer
aqui. Seria difícil para você entenderem como funciona nossa nave. Escolhemos o
Brasil por ele ser um país de paz e não colocará aqui sua parafernália de
guerra como fazem os outros países. – Eu olhei para o "Velho"
Escoteiro. Ou ele ou o amigo dele o tal Chefe Bill tinham uma incrível
imaginação. Assisti a filmes e mais filmes em que os americanos queriam dominar
e até atiravam nos alienígenas antes de conversar. – O "Velho" não se
fez de rogado e mostrando que lê meus pensamentos parou a história. –
"Velho"? O que foi? – Ele rispidamente disse – se acha que estou mentindo
porque continuar a contar a você seu pirralho?
- Tudo
bem "Velho". Desculpe. Gostaria de saber o final de tudo. Vou
continuar – disse. Mas se notar qualquer olhar de galhofa paro na hora. – Juro
que não o farei "Velho". – Ele
como se fosse tomar um ar lá fora, foi até a escada que levava a rua e em pé
mesmo continuou – Chefe Bill me contou que ficaram seis horas na pista quatro.
Sheyla o convidou para conhecer a nave. Incrível. Lá havia mais de trinta mil
passageiros. Na realidade a aparência deles era de pequenos anões, magros, cara
fina, sem cabelos e orelhas. Sheyla riu do meu espanto e do brigadeiro, pois
ele insistiu em ir. Não havia animosidade e nem cara feia para nós. Todos
sorriam e parecia que viviam em um sistema de harmonia perfeita. O pior foi que
o Chefe Bill me disse que tinha se apaixonado por Sheyla. – Como? Perguntei.
Não sei. Eu sabia que a aparecia dela não era aquela e o pior ela me convidou
para conhecer Alpha Centauro. O brigadeiro foi contra.
- Para finalizar eles partiram
por volta de meia noite aquele dia. Chefe Bill foi com eles. O brigadeiro não
aceitou e disse que levaria o caso a Corte Marcial. Seis meses depois o Chefe
Bill voltou. Uma aeronave que voltava para buscar mais gente o deixou em algum
lugar do Deserto de Saara. Olhe eu mesmo não acreditei na conversa do Chefe
Bill. Mas ele me mostrou uma gravação feita lá no novo planeta onde iriam
viver. Incrível! Os primeiros pioneiros que lá chegaram mudaram o clima, os
quatro oceanos eles os transformaram em um só, o planeta todo foi reflorestado
e agora já estava com florestas imensas de polo a polo do planeta. Eles tinham
muitos dos animais que temos aqui na terra. Olhe, poderia ficar aqui contando a
você tudo que o Chefe Bill me contou. Tem muito mais e nada que um bom
Escoteiro explorador não tenha vivido como ele viveu.
Chefe Bill Wagryth até hoje não casou. Disse que se apaixonou por
Sheyla. Sabia que nunca poderiam viver juntos nem agora e nem nunca. Ela estava
anos luz adiantada dele. Se em um passado longínquo tinham se conhecido em
alguma estrela do universo hoje a distancia entre os dois era bem grande. O
Brigadeiro Duarte não gostou do final de tudo. Não o expulsou e até o ajudou
com um analista da aeronáutica. Mas voltar a sala de comando na torre estava
fora de cogitação. Abriram uma exceção. Agora ele estava treinando novos Controladores
de Voos. Disse-me que está morando em uma casinha próximo ao lago Santa Inês.
Pertence a Aeronáutica. O brigadeiro disse que poderia morar o tempo que
quisesse. - E ele terminou dizendo – Olhe meu amigo não enlouqueci. Mas depois
que conheci Sheyla não quero viver com nenhuma outra mulher.
Fico a imaginar se tudo não foi obra do destino,
um destino que não entendo, para muitos impossíveis de imaginar. Amar alguém
que mora nas estrelas? Se apaixonar por alguém que nunca poderão viver juntos?
Não conto esta história para ninguém. Eu mesmo disse ao Chefe Bill que ele
estava ficando louco. Interessante que a Aeronáutica e a Infraero conseguiram
abafar tudo. Não deu nada na imprensa. Foi uma história não contada. Abafada
pelas Forças Armadas. Ninguém soube e nem irá saber. Ele disse que confiava em
mim. Que não contaria a ninguém. – O "Velho" riu alto. Claro estou
contando a você porque não sei. Quem sabe por que o Chefe Bill morreu a duas
semanas? Ou por que não tenho com quem falar e conversar? Quase ninguém vem
aqui. Olhe o Chefe Bill antes de morrer me disse ainda que todos os abandonaram.
Noêmia a sua noiva nem chorar chorou quando o mandou passear. Com os olhos
cheios d’água me disse que precisava desabafar com alguém. Nada como o
"Velho" Escoteiro. E ele me disse que quando fosse para o outro lado
da vida que eu estaria liberado para contar.
O
"Velho" Escoteiro se calou. Não disse mais nada. Nunca me contou uma
história assim. Passava das duas da manhã. Fui embora quando vi o
"Velho" Escoteiro subindo as escadas para o seu quarto. Acho que Vovó
já estava dormindo. Na rua fria e atípica de uma noite de inverno fui pensando
na história do "Velho". De escotismo pouco, de historias
inverossímeis muito. Este "Velho" Escoteiro nunca me deixou na mão
com boas histórias. Atravessei a rua e sem querer torci o pé e cai ao chão. Sem
pensar olhei para o céu. Uma nave gigantesca estava passando em grande
velocidade. Velocidade de Dobra? Risos. Não sei. Melhor é continuar mesmo
mancando. Não posso me apaixonar por alguém que mora nas estrelas. Já tenho uma
esposa e outra não ficaria bem para um Chefe Escoteiro. Que sono! Acho que vou
dormir bem, mas pouco. Amanhã, ou melhor, hoje tem trabalho. "Velho"
escoteiro. Amo este "Velho".
Simplicidade é ter o céu e só querer uma estrela...
É ter o mar e só querer uma gota...
É ter o mundo e só querer você...
Simplesmente você...
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