Conversa
ao pé do fogo.
O
herói que não morreu.
“Papai
Noel, você que não se atrasa,
Na
visita anual que faz a terra
Vê
se pode mandar voltar em minha casa
“O
meu papai que foi brigar na guerra”
Tenho
dificuldades de lembrar-me desta história. Passou-se no inicio da década de cinqüenta.
Estava com 11 anos, e ao contar, pode haver lapsos de memória ou mesmo falta de
sincronismo. Espero que me perdoem. Afinal tenho bloqueios de minha época de
menino, e mesmo assim vou tentar ser bem fiel ao fato que ainda tenho dúvidas
se aconteceu. Tinha renovado minha promessa, pois fora lobinho por três anos e
meio, e estava lutando para “tirar” minha segunda classe. Havia 10 meses que
fizera a passagem. Não era fácil. Como muitos conseguiram, eu também ia
conseguir. Participava da patrulha Lobo. Um ótimo time e gostava de todos os
meus amigos patrulheiros, alcunha bem conhecida na época.
Não
me esqueço de que naquela ocasião quem conseguisse a primeira classe e se fosse
bem à prova de técnica e segurança da faca e machadinha (das pequenas) poderia
usá-las no cinto. Via o orgulho do Monitor e do sub, alem do Nonô, que exibiam
pelas ruas em seus cintos, a faca do lado direito e a machadinha encapada do
lado esquerdo, na vinda e ida à sede. Sonhava em fazer o mesmo. Mas não é esta
a história. Ela não é sobre mim. Ela é do Tito. Um jovem moreno claro, cabelos
pretos, olhar triste, calado e que se tornou um enigma para mim. Da precária
lembrança recordo que Tito adentrou na patrulha cinco meses após minha chegada.
Sua apresentação foi bem estranha. Não havia sorrisos em seu rosto. No grito da
Patrulha ele nada dizia nem mesmo acompanhar com os lábios.
Em
reuniões de Patrulha Tito não se manifestava. Várias vezes notei que ele estava
em sintonia com alguém. Não sabia quem ou o que podia ser. Não ouvia vozes só
sua maneira de olhar, balançar a cabeça como concordando. Tito era estranho.
Estranho mesmo. Os outros não comentavam. Aceitavam Tito como ele era. Um dia
procurei o Chefe Jessé e comentei sobre o fato. Expliquei que não falei nada
para a patrulha. Não queria criar um clima ruim de falta de confiança ou mesmo
de fraternidade. Claro, tinha conversado com o monitor e ele me disse que nada
observou. O meu chefe de tropa era um “cara” legal. Disse que não me
preocupasse. Cada um de nós temos os nossos problemas e agimos conforme fomos
criados em nossa família. Disse também que poderia notar que irmãos sempre são
diferentes e compete a cada um de nós aceitarmos como são.
Quando
ia saindo o Chefe preocupado, me pedindo reserva, e não comentar-se com ninguém,
que o pai de Tito, um Australiano, nos últimos meses da guerra, se alistou. Foi
imediatamente enviado para frente de batalha, já em território alemão onde foi
morto por uma granada que explodiu a sua frente. Sua mãe já estava grávida de oito
meses quando ele partiu em 1943. Tito nasceu prematuro. Seus avôs resolveram
não ficar na Austrália e vieram para o Brasil. Ele sabe o que aconteceu. Não
esconderam nada. Fiquei pensativo. Talvez na minha pequena cabecinha de jovem
de 12 anos não pudesse raciocinar direito e entender como hoje entendo. Mas uma
semana depois já tinha esquecido boa parte do que o chefe me contou.
Acredito
que comecei a me preocupar e até a ficar com medo, em um acampamento de fim de
semana que fizemos nas Corredeiras de São Mateus. Por duas vezes acampamos lá.
Um lindo local. Bom arvoredo, e muitas plantações de coqueiros que o
proprietário do terreno não tinha plantado e disse que podíamos usar a vontade.
Não imaginem grandes corredeiras. Nada mais que um pequeno riacho, que em época
de seca, atravessávamos pulando pedras sem molhar os sapatos. Como tinha um
belo descampado, com capim comum, armávamos as barracas sem dificuldade e
dificilmente seriamos atingidos por uma enchente. Estávamos só a patrulha.
Empurrávamos com alegria a carrocinha pela estradinha de terra e vi ao longe
uma enorme nuvem negra prenunciando chuva. Como dizia o meu Grande chefe
Francisco Floriano de Paula, nuvens baixas cor de cobre, é temporal que se
descobre. Se tem chuva e depois vento, fica em guarda e toma tento.
Ainda
havia um bom caminho para percorrer. Resolvemos dar uma pequena corrida, pois o
caminho era bom sem subida. Olhei em volta e não vi Lito. Estava bem atrás de
cabeça baixa, balançando o corpo dizendo baixo, tudo bem! Tudo bem! Veio
correndo até nós e nos mandou parar. Paramos. Um raio de enorme proporções caiu
a menos de 10 metros alem de nós na estrada. Derrubou uma árvore de bom
tamanho. Se Lito não tivesse nos parado não sei o que aconteceria. Quando
contornamos a arvore caída, ele disse ao Monitor que não fosse para as Corredeiras
de São Mateus. – Por quê? Disse o Monitor. - Fiquei sabendo que uma grande
“Tromba d’água” iria cair dentro de poucas horas e vai inundar tudo! – disse.
Ficamos
pasmados! Primeiro o raio agora a enchente. Afinal quem era Lito? Ele de cabeça
baixa, não falou mais. Fomos até próximo às corredeiras e vimos do alto da
estrada que nada havia. Nem chuva, nem Tromba d’água, nada. – Esperem, disse
Lito, aguardem. Não demorou muito e um trovejar como se fosse um grande avião
pousando mostrou uma enormidade de água vindo. Subimos com a carrocinha uns 10
metros acima do morro e a água tomou conta de todo o vale. Se tivéssemos ido em
frente, não sei o que seria de nós. Claro, a inundação teria levado todos.
Olhamos para o Lito e ele de cabeça baixa nada mais falou. Bem, não vou entrar
em mais detalhes, pois assim como veio, a “Tromba d’água” se foi. Não sujou
muito a grama e pudemos acampar com um pouco de tranqüilidade.
Outra
vez foi quando viajamos de trem até uma cidade onde iríamos acampar com outra
tropa amiga. Lito na estação começou a balançar a cabeça, os braços dizendo,
tudo bem! Tudo bem! Sabia que dalí não viria boa coisa. Logo ele procurou o
Chefe e disse que o trem iria se atrasar, pois tinha desencarrilhado o último
vagão onde morreu o condutor. O chefe foi até ao Chefe da Estação e este não
sabia de nada, o trem já tinha partido da estação próxima e deveria adentrar
pelos seus cálculos daí a 15 minutos. O tempo passou e nada. Duas horas depois
foi enviado uma vagonete para saber o acontecido. Confirmou o que Lito tinha
dito. Agora sabíamos que Lito tinha alguma anormalidade. Naquela época não
tínhamos idéia de nada. Ficamos é com medo de Lito. Mesmo assim fingíamos que
ele era mais um patrulheiro e o tempo foi passado. Ele já tinha notado e mesmo
assim continuava.
Estamos
em um Acampamento nas férias de julho, onde ficamos por sete dias. Sai só com
um facão para tentar achar um galho se possível de goiabeira, pois pretendia
fazer um arco e soube que ali conseguiria. Não pretendia ir longe. Só saiamos
em dupla e disse ao Monitor que voltaria logo e mostrei aonde iria. Ao subir
uma pequena elevação avistei a minha frente, Lito, sentado próximo a um
Jequitibá não muito grande e falando com alguém. Não vi ninguém. Fiquei ali a
espreita e Lito parou de falar. Alguém me tocou nas costas e quando olhei Deus
do céu! Um homem fardado, com uma aureola branca em volta da cabeça e disse
para não ter medo. Dizer para um menino de 12 anos não ter medo naquela hora
era fora de propósito. Tremia e já ia correr quando ele disse que era o pai de
Lito. Como? Pensei eu. O pai de Lito morreu na guerra. Ele leu meu pensamento e
disse que sim, havia morrido, mas sua alma vinha sempre visitar Lito. Ele era
parte dele. Precisava dele.
Não
estava entendendo nada. Meus joelhos tremiam. Notei que minha calça estava
molhada e pingando. Verdade. Não vou mentir. Fiz poucas e boas como escoteiro e
sênior, mas naquela primeira vez eu era um grande medroso. O tal pai de Lito,
sorriu (era bem simpático) e me disse que seu filho tinha uma grande amizade
por mim. Ele contava comigo e eu não poderia decepcioná-lo. Para mim tudo bem.
Naquela hora concordava com tudo. Não vi mais a aparição. Lito estava ajoelhado
e chorando. Chorava e chorava. Fui até ele e o peguei pelo braço. Ele se
levantou e me abraçou. Disse que eu era o único que sabia do seu contato com o
pai. Ele não tinha contado para ninguém.
Queria
ser diferente. Não conseguia. Quando começou a vê-lo não entendia nada. O tempo
foi passando até que um dia ele se aproximou e disse que era o seu pai. Ele
sabia que a noite eu pedia a Deus para trazê-lo de volta. Afinal que adiantava
uma medalha escrito nela herói? Se os tais heróis não voltam para casa, será
que vale a pena ser herói? – Não entendi bem o que Lito queria dizer, mas ele
continuou dizendo que sua mãe chorava muito. Tentava disfarçar quando ele
estava presente, mas seus olhos sempre vermelhos denunciava. Em um natal,
quando tinha seis anos, continuou Lito, eu pedi a Papai Noel que trouxesse o
meu pai de volta. Ele voltou à noite, e sentado no chão ao pé da minha cama,
conversou comigo por um longo tempo. Fiquei alegre, quando acordei e procurei
minha mãe não vi mais papai.
Ele
me aparecia não freqüentemente. Sempre a me dizer o que ia acontecer, o que
devia fazer, me orientava com minhas lições, dizia que estava sempre junto de
mim em todos os lugares. Aquilo estava se tornando para mim uma obsessão
finalizou ele. Olhe meu amigo, continuou. Adoro o meu pai, mas já pedi a Deus
para levá-lo para junto de si. Acho que está na hora de ele partir. Não queria
um pai assim, queria ele em carne e osso. Disse isto para ele ontem depois que falou
com você. Olhe você é o único que conseguiu vê-lo. Minha mãe não acredita em
mim e nem o Padre Lívio. Acho que tudo aconteceu assim como estou contando.
Pode ser que tenha tido outras passagens que não me lembro. Só sei que um
semana depois, Lito me procurou e disse que se pai ia embora. Despediu dele e
disse que o esperaria em outra vida. Disse para não me preocupar. Que iria
viver até aos 90 anos. Já pensou?
Lembro
que o tempo passou. Dois anos depois fui eleito monitor da Patrulha. Lito era o
meu sub. Nos entendíamos perfeitamente bem. Não houve mais comentários do seu
pai. Lito se tornou alegre, bem disposto e todos gostavam muito dele. Poucos se
lembravam da enchente, do raio e de várias outras premonições dele, claro, pois
seu pai era o seu confidente. Muitos fatos se sucederam de forma natural. Vivi
o escotismo em sua plenitude. Nunca vi um acidente, um braço ou perna quebrada,
um afogamento. Nada. Agradeço a Deus por isto. Mas também tenho que agradecer
ao pai de Lito, pois poderia ter morrido com um raio ou com uma enchente. Estou
vivo. Graças a Deus.
Daquele
passado distante, tento reviver o que aconteceu com Lito. Não lembro. Lá pelos
idos de 1971, estava dirigindo um curso de Chefes de Alcatéia, e notei que um
aluno me parecia conhecido. Olhei sua ficha, e estava escrito Lindomar Fernando
Neto. Não me toquei. No final do curso, ele me olhou e disse – Não lembras meu
caro chefe? Lembrei! Agora já homem era a cara do seu pai. Abraçamo-nos, fomos
após as despedidas juntos até um restaurante. Jantamos, tomamos uma cerveja
(ele só refrigerante) e me contou sua vida depois da minha saída. Não quis
casar. Achou que devia ser um discípulo da Igreja de Deus. Entrou em um
seminário e agora era um padre da paróquia de São Manoel.
Convidou-me
para um dia ir visitá-lo. Eu iria surpreender com o seu Grupo Escoteiro. Sorri.
Quem diria! Bem como todo final de história feliz, ele também sorriu. Ele foi
para um lado e eu fui para o outro. Nunca mais nos vimos. E que seja o que Deus
quiser.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
obrigado pelos seus comentários