Jericó – Uma
cidade sem lei.
- Quer saber? Nem sei por que
o Velho me contou aquela história. Ele não me disse se conheceu Billy e Any, e
nem quem lhe contou sobre eles, mas ficamos até pela madrugada eu e ele na sua
sala grande, ele sentado na sua poltrona de vime, já gasta com o tempo e como
os olhos piscando começou:
- Jericó era uma importante
cidade dos tempos bíblicos, descrita no Antigo Testamento como a “Cidade das
Palmeiras” ou “Cidade das Palmas”, pela abundância desse tipo de árvore na
região. Ainda hoje, conserva o apelido. A passagem bíblica mais famosa sobre o
lugar é a que mostra os hebreus, recém-chegados à Terra Prometida, derrubando
as imponentes muralhas da cidade ao som de trombetas e gritos, conquistando-a,
liderados por Josué.
Billy e Any não eram um casal
perfeito, mas viviam felizes em Porto Feliz uma cidade no interior de Santa
Catarina. Tinham uma bela casinha, um lindo filho de 8 anos, e Ralph era o
encanto dos dois. Billy trabalhava na Secretaria da Fazenda. No CAGE estava lotado
na Divisão de Controle de Administração Direta. Era um “pau” de toda obra, mas
na função de Controlador Contábil. Não podia reclamar do seu salário, mas como
todo ser vivente ambicionava mais. Any antes de se casar se formou como
Assistente Social e atualmente era só uma dona de casa. Ela tinha por Ralph um
amor grandioso. Ficava ao lado dele o tempo todo e só deixou de ser sua sombra
quando entrou para o escotismo como lobinho. A própria Akelá explicou que ele
precisava crescer. A mãe junto prejudica e sufoca o aparecimento de liderança.
Ela entendeu. De vez em quando olhava as atividades e via que Ralph era um
grande lobinho. Em casa não tinha outro assunto.
Um dia Billy disse a ela que
precisavam conversar – Seu Chefe o Doutor Getúlio o convidou para organizar e
dirigir o novo escritório da Secretaria da Fazenda em uma cidade no interior do
Mato Grosso quase divisa com o Pará. Longe à beça. Mas seu salário seria
duplicado, havia possibilidade de Any trabalhar com ele também por um ótimo salário.
Seria por cinco anos. Se conseguissem formar pessoal com nativos estariam
liberados para voltar a Porto Feliz com as mesmas regalias. Anny gostou da
ideia. Valia o sacrifício. Não venderiam a casa somente os móveis. Na volta
comprariam outros. Billy vendeu seu Simca Chambord do ano e comprou uma Rural
Williys seminova. Seria uma viagem de mais de três mil quilômetros. Tudo
preparado se despediram dos parentes dos amigos prometendo que não seria adeus
e sim um até logo.
Apesar da mudança, da viagem e
em conhecer outros lugares Ralph chorou muito ao deixar a Alcateia. Fizeram uma
reunião de despedida de partir o coração. Todos lhe deram abraços e muitos
presentes. Um deles foi de Tininha, uma morena de olhos verdes da sua Matilha.
Entregou uma cartinha perfumada. Ralph guardou para ler na viagem. Pararam em Três
Marias em um restaurante a beira do lago da represa para almoçar. Ralph abriu a
cartinha de Tininha e lá estava escrito – Te amo muito. Vou te amar por toda
minha vida. Qualquer adulto daria boas gargalhadas. Os pais não. Sabiam que os
jovens que ainda nem despontaram para vida também tinham sonhos. Anny e Billy
ficaram com os olhos cheios de lágrimas. Foram três dias de poeira, sol chuva
estrada esburacada e enfim chegaram a Jericó.
Não era uma cidade feia. Tinha
uma bela praça bem arborizada, mas quase ninguém a passear ou descansar. Uma
Igreja linda que disseram depois ser do ano de 1910. Devia ter uns vinte e
cinco mil habitantes. Poucos na rua e o comercio quase vazio. Billy tinha o
endereço onde iriam abrir o escritório e também serviria como casa nos
primeiros meses. Depois se quisessem poderiam alugar outra. Não ficava longe do
centro. Quase ninguém para perguntar. A maioria nas janelas abertas quando
passavam elas se fechavam. Estranho isto pensaram. Há primeira semana se foi.
Contrataram uma moça e um rapaz para ajudá-los. Aos poucos eles foram se
abrindo e falando da cidade. Contaram coisas que assustaram Billy e Anny. Em
pleno ano de 1950 bandidos dominando uma cidade? Pois é doutor. (eles o chamavam
assim). Cicatriz vive nas montanhas. A cada mês desce a cidade e lá está seu
Astholpo o prefeito abrindo seu armazém para eles se servirem. Um dia antes ele
só deixava o combinado que seria rateado por toda a cidade. O restante dos mais
de cinco mil itens ele esconde em um porão ali perto.
Billy e Anny não acreditaram
muito. Mas se fosse verdade iriam agir na base de viver e deixar viver. Não
iriam viver ali para sempre. Ralph voltou da escola animado. Soube que na
cidade tinha um grupo Escoteiro. Um amigo da sua sala contou. Deu o endereço.
Billy o levou lá no sábado. Tomou o maior susto. Eles marchavam para todo lado.
Tinham uma banda enorme. Os que não eram da banda usavam uma espécie de fuzil
de madeira. O que era aquilo? Mas Ralph queria participar. Conversou com o
Chefe. Foi admitido e enviado a Alcateia que também marchava. – Porque só
marcham? Perguntou. Só na sede. Uma vez por mês acampamos. Uma vez por mês
fazemos jornadas. Lá tudo que pensar em técnica mateira nós fazemos. O senhor
já sabe do Cicatriz. Precisamos preparar os jovens para um enfrentamento no
futuro.
O trabalho para organizar o
escritório da Secretaria da Fazenda foi cansativo. Já tinham admitido seis
funcionários. Bob Masterson seria o indicado para o futuro como Chefe do
escritório. Formado em Direito e o melhor, Chefe da Tropa Sênior. O mês
terminou. Billy e Anny resolveram dar uma folga no fim de semana. Souberam de
um lago muito bonito e porque não fazer um pic nic? Bob Masterson desaconselhou.
Cicatriz deve aparecer por aqui domingo. Neste dia ninguém sai à rua. Todos
ficam trancados. Conselho dado, conselho guardado. Domingo amanheceu cinzento.
A cidade deserta. Nem os passarinhos cantavam nesta manhã radiosa. Meio dia.
Mais de quarenta cavaleiros entraram na cidade vindo das montanhas. Cicatriz à
frente. Ele era imponente. Devia ter quase um e noventa de altura. Mãos enorme.
Podia torcer um pescoço de alguém com facilidade. Um fuzil a tiracolo. Sorria
meio debochado. Parou em frente à igreja e sentou em um banco que ali existia.
Interessante. Cicatriz era
loiro. Deveria andar na casa de seus quarenta anos. Uma enorme cicatriz iniciava
pela sua orelha direita e terminava na esquerda. Não diria que era horrenda,
pois até dava um aspecto sobrenatural e excitante. Seu Astholpo apareceu. O
levou até o armazém. Seus capangas encheram duas carroças de víveres. –
Astholpo! Disse Cicatriz. Na próxima vamos precisar de dinheiro. Dez reais por
habitante. Quem se recusar sobe a montanha comigo. Billy e Anny viam e ouviam
tudo da janela da sua casa. Estavam hipnotizados pelo que acontecia. Fato
inédito. Nunca tinham visto nada igual. Só no cinema. Sentiram uma lufada de
vento e a porta se abriu. Correram até lá. Ralph saiu correndo em direção a
Cicatriz. Levava seu fuzil de madeira. Billy e Anny tremeram. Correram atrás
dele. Mesmo gritando para parar ele não parou. Ficou bem em frente à Cicatriz
apontando aquela arma de brinquedo. – Você está preso! Disse Ralph.
Uma onda de pavor correu de
porta em porta, de janela em janela. Todos se trancaram mais em suas casas.
Billy e Anny desesperados. Pare Ralph, pare! Disseram. Cicatriz levou um susto.
Sacou seu colt 45 com incrível rapidez e mirou bem na testa de Ralph. Seus dedos
coçaram o gatilho. Para ele não importa se era menino ou não. Se alguém queria
matá-lo ele matava primeiro. Anny desesperada gritava – Não mate meu filho!
Pelo amor de Deus! Ele só tem sete anos! – Um tiro se ouviu. Um ribombar por
todas as ruas da cidade. Cicatriz olhava com olhos esbugalhados. Levou sua mão
direita até o peito. Sentiu um furo em seu gibão de couro. O sangue escorria em
filetes pequenos. Cicatriz não acreditava. Nunca pensou em morrer assim. Morte
estupida só porque ia mandar um menino para o inferno.
Ninguém até hoje ficou sabendo
de onde partira o tiro abençoado. A bandidada ameaçou uma reação. Não se sabe
como, apareceram todos os Escoteiros da cidade. Formados em linha com seus
fuzis de madeira. Atrás a banda fazendo um enorme barulho. A poucos metros dos
bandidos o Chefe Bob Masterson gritou – Escoteiros! – Preparar! Todos se
ajoelharam. – Apontar! - Apontaram seus fuzis de brinquedos para os bandidos.
Não ficou ninguém. Eles montaram em seus cavalos e partiram a galope. A cidade
saiu rua. Uma algazarra tremenda. – Livres! Gritaram. Estamos livres pela
primeira vez na vida. Cicatriz dava seus últimos suspiros. Olhou o povo
gritando. Sentiu uma dor tremenda e viu ao seu lado um demônio enorme. Um
grande chifre, dentes soltando fumaça. Ficou em paz. Agora ele sabia que estava
em casa.
O tempo passou. A felicidade
voltou. Jericó cantava aleluia. Não era e nem nunca fora a cidade antiga
bíblica situada na Palestina. O rio que cortava a cidade também se chamava rio
Jordão. Muitos diziam que Jericó significava perfumado e a deriva da palavra Cananeia.
O Bispo mandou um novo pároco para a cidade. Agora em paz. Billy e Anny
começaram a amar a cidade de Jericó. Saudades só dos pais e dos amigos. Fizeram
uma bela casa na Rua dos Hebreus. Anny resolveu ser escoteira. Foi bem recebida
e na promessa recebeu seu fuzil de madeira. Billy ajudava na parte burocrática.
O Prefeito seu Astholpo mandou fazer um belo pórtico na entrada da cidade. Em
uma linda placa de acrílico escreveu – É fácil as pessoas mandarem você se
calar, quando a dor é só sua, mas seja como o cego de Jericó – Grite, grite até
Jesus parar tudo para te ajudar!
E em todos
os lugares, em todas as missas, em todos os cultos religiosos, o povo dizia que
a mão de Deus foi quem deu o tiro certeiro em Cicatriz. Bendito seja. – E
cantaram aleluia para sempre. “Vem com Josué lutar em Jericó, Jericó. Vem com
Josué lutar em Jericó e as muralhas ruirão. As trombetas soarão, abalando céu e
chão. Cerquem os muros para mim, pois Jericó chegou ao fim”!
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