Lendas Escoteiras.
O Anjo da Voçoroca.
(Um
conto do Chefe Kleber Svidzinski)
Apavorados.
Gago, Leco e Pietro estavam apavorados. Tinham certeza que conheciam o caminho
de volta; já tinham feito aquele percurso três vezes durante o dia. Caramba,
será que a escuridão fazia tanta diferença assim? Agora parecia que as trilhas
eram todas idênticas e as árvores exatamente iguais... Gago sabia que aquele
lance de ir buscar água na mina durante o período de ronda não ia dar certo,
mas preferiu não dizer nada senão os outros dois diriam que tinham medo. É
claro que o medo era realmente o principal motivo, mas também não confiava
muito no sentido de orientação deles - se pelo menos estivessem com o Guí, ele
se sentiria mais seguro; afinal, o monitor passava muito mais segurança em suas
decisões.
O
mais incrível é que chegar até a mina pareceu muito simples, mas por que a
volta tinha que se complicar tanto? E, o pior, por que deixaram a lanterna no
campo? Agora tinham duas preocupações: encontrar o caminho certo e torcer para
o Chefe Laerte não perceber que tinham “abandonado” o posto durante o período
de ronda. Deveriam pelo menos ter pegado o apito que ficara pendurado no
porta-bastões - afinal se era para ser utilizado em caso de emergência, eles
acreditavam que agora se encontravam em uma.
Leco
sentia-se incomodado em seguir ao final da fila. Por várias vezes olhava para
trás, não gostava daquela incômoda situação e, por vezes, tinha a sensação de
escutar passos as suas costas. Pietro procurava manter a calma, falava pouco,
sabia ter sido ele o culpado daquela situação. Depois de feito o convite,
achava que os outros dois iriam se recusar a ir até a mina e ele se sentiria o
mais corajoso dos três. Agora se preocupava mais a cada rumo que a trilha
tomava e não visualizava nada que sinalizasse que estivessem na direção certa.
Fazia meia hora que tinham deixado o acampamento, em 15 minutos terminaria o
período de ronda deles. Como todos estavam dormindo, provavelmente a ausência
seria notada somente pela manhã.
De repente, um pequeno clarão começou a aparecer entre algumas folhagens
no que parecia ser uma curva à frente deles. Todos começaram a sorrir com um
forte sentimento de alívio. Ao percorrerem o curto trajeto até onde a trilha
fazia a curva que levava ao pequeno clarão ficaram um pouco perplexos. Não era
o local do acampamento. No local havia um descampado enorme, todo gramado e,
sob um pé de jatobá enorme, uma pequena fogueira, tímida, junto a ela uma
senhorinha sentada num cupinzeiro, com uma manta xadrez bastante surrada sobre
os ombros, olhava para as chamas, expressão tranquila, serena. Num primeiro
momento os três se sentiram apavorados, chegaram a pensar em sair correndo.
Olharam como se perguntando o que significaria aquilo. Porém, a figura daquela
senhora lhes trazia certa tranquilidade, sua fragilidade não aparentava nenhum
tipo de perigo. Ficaram alguns segundos em silêncio. Sem olhar para eles, ela
fez um gesto para se aproximarem. Eles não se mexeram. Estavam totalmente
atônitos. Ela repetiu o gesto, desta vez olhando para os três com um leve
sorriso no rosto. Pietro olhou para Leco com uma pergunta silenciosa nos olhos,
este simplesmente deu de ombros. Gago com uma das mãos sobre os ombros de Leco,
também sinalizou positivamente com a cabeça. Pietro então virou-se e
timidamente começou a caminhar na direção da senhora.
- Sentem-se, meninos. Pelo que vejo parecem perdidos – disse com uma vez
baixa, tranquila, novamente sem fitar os jovens. - Não... Quer dizer, sim... Na
verdade, acho que estamos sim – começou a balbuciar Pietro – somos escoteiros,
estamos acampados aqui perto, só não sei exatamente onde; saímos para buscar
água e não conseguimos encontrar o caminho de volta. A velha senhora ficou em
silêncio por alguns instantes, os meninos não tiravam os olhos daquela figura
franzina, indefesa. Ela pegou um pequeno galhinho fino no chão, mexeu as brasas
da pequena fogueira. Pequenas faíscas coloridas ganharam o céu, a fogueira
aumentou um pouco suas chamas, o clarão iluminou melhor aquela estranha figura.
- Sabem que este caminho é muito perigoso? – indagou após o gesto – Se
seguissem por mais alguns metros, encontrariam um grande precipício, perigoso,
uma voçoroca enorme que já causou alguns acidentes. – N. não, quer dizer, o
Chefe Laerte nos avisou sim, que não poderíamos nos deslocar na direção do
Morro da Seriema, disse que no sopé dele havia risco. Mas não temos a menor
condição de saber onde estamos neste momento – disse rapidamente Leco.
-
Hummm, perigoso, muito perigoso... Meninos não deveriam andar sozinhos, muito
menos durante a noite – continuava a fitar a pequena fogueira. Por vezes a
revirava com o pequeno graveto, ora puxando um carvãozinho, ora empurrando uma
brasa. Os meninos se entreolhavam constantemente. Apesar de não aparentar
nenhum tipo de perigo, eles estavam totalmente perplexos com a cena, com aquela
situação. - A-a se-senhora, mo- mora por a-aqui? – gaguejou ainda mais que de
costume Gago. - O que faz neste local, numa hora destas? – balbuciou Leco,
quase cortando Gago.
A
pequena senhora sorriu, ainda sem fitar os jovens. Jogou o pequeno galho para o
lado, olhou para o alto. A escuridão não permitia aos jovens visualizar direito
os olhos, nem definir muito bem seu rosto, aparentava talvez uns 60 anos, por
baixo da velha manta, usava uma blusinha azul de flanela, simples. Não estava
frio, o clima estava gostoso, suave, o céu estrelado, lindo. - Moro aqui perto
– disse depois de uns segundos que pareceram um século – gosto de caminhar por
aqui à noite, olhar o céu, sentir o perfume das damas-da-noite... Sim, após o
comentário eles puderam sentir o perfume intenso no ar. Talvez a situação até o
momento não permitisse a eles prestar atenção neste detalhe. O perfume intenso
da flor deu para aquela situação um ar ainda mais estranho, mais misterioso.
Gago apertou ainda mais fortemente o ombro do amigo, que acusou o aperto dando
uma pequena abaixada no corpo.
-
Vo-você não tem me-medo de andar po-por aí à noite? – questionou Gago. - Medo?
– voltou a fitar a fogueira, seu sorriso aumentou – Não, claro que não, nunca
tive. Hoje conheço cada palmo desta região, cada morador, cada planta deste
lugar. - Mesmo? Então pode nos ajudar, poderia nos mostrar o caminho de volta
para nosso campo? Disse apressadamente Pietro, com uma forte expectativa na
voz.
- Voltar
ao campo... Hummm... De onde não deveriam ter saído para se aventurar por
lugares que não conhecem. Sabem que este tipo de atitude poderia ter lhes
custado a vida. - disse a senhora, desta
vez voltando-se para os jovens, que por causa da escuridão não conseguiam fitar
seus olhos – Pessoas já perderam suas vidas por causa deste tipo de erro.
Os jovens se entreolharam novamente. Agora
eles começaram a perceber o risco que haviam corrido. Permaneceram em silêncio,
como se concordassem com a senhora. - Sigam margeando este descampado nesta
direção – apontou com o braço – uns 50 passos à frente chegarão a uma árvore
torta, na beira deste caminho mesmo. Ao passarem por ela encontrarão uma trilha
estreita a direita, sigam por ela, não tem desvios, sigam sempre por ela, não
saiam dela, chegarão ao lugar que desejam. - Uau, fácil assim? Nossa, nem
sabemos como agradecer – disse Leco, bastante empolgado – como é o nome da
senhora mesmo?
- Lola –
respondeu com um sorriso bonito – não precisam agradecer... Não a mim,
agradeçam a Deus, ele torna tudo possível... Cuidem para não repetir o mesmo
erro novamente. - Muito obrigado por nos ajudar – disse Pietro já puxando Leco
com Gago a tiracolo, caminhando na direção indicada. Caminharam apressadamente
margeando o descampado. Conforme dito pela senhora, encontraram a árvore logo
após a trilha. Ficaram eufóricos. Olharam para trás na direção de onde estaria
a velha senhora e não conseguiram avistar a claridade da fogueira.
-
Ué? Cadê a Dona Lola? Desta distância daria para enxergar a fogueira – balbuciou
Leco; - Talvez tenha sido encoberta por algum arbusto. Vamos, vamos logo, nosso
turno de ronda está se esgotando, precisamos acordar os próximos – disse Pietro
já se virando e caminhando apressadamente pela trilha estreita. “Não tinha
nenhum arbusto entre nós e a mulher”, pensou Gago com um arrepio subindo pelo
corpo. Mas esqueceu-se rapidamente disso e saiu andando apressado atrás dos
amigos. Conforme tinha sido dito, pouco mais a frente avistaram o campo. Foram
invadidos por uma alegria, uma enorme emoção, parecia tudo normal, nada
diferente teria acontecido. Consultaram o relógio, estava na hora de virar o
turno de ronda, estavam aliviados, mas também muito cansados e com sono. Depois
de chamarem por Carlinhos, Pikachu e Tom em suas barracas, se dirigiram em
silêncio para a barraca. Ninguém mais tocou no assunto. A tensão já havia sido
suficiente. Por um triz não tinham entrado numa enrascada maior ainda. E
pensando em abismos, trilhas, fogueiras e na velha senhora, pegaram no sono.
Manhã
seguinte, depois da alvorada e dos primeiros afazeres matinais, educação
física, higienização e café da manhã, saíram os três novamente com uma bacia
grande e as louças do jantar – o Chefe não permitia que saíssem à noite para
lavar louça na beira do córrego – e do café da manhã. Pietro carregava o balde
onde enxaguavam as louças para que a água com gordura não contaminasse o
pequeno riacho e Gago e Leco com a bacia enorme com as louças.
Ainda
não tinham feito nenhum comentário sobre a noite anterior. Fizeram o pequeno trajeto
até o córrego rapidamente, em silêncio, o gramado molhado pelo orvalho
encharcava os meiões do uniforme e os calçados deixando os pés mais frios. Ao
chegarem à beira do barranquinho que levava ao córrego, viram um vaqueiro
segurando as rédeas de um cavalo enquanto este bebia água. Estava de cócoras,
fumando um pequeno toco de cigarro de palha que quase lhe queimava os dedos.
Olhou de soslaio para os meninos, deu um sorriso, dentes meio amarelados pelo
fumo, apagou a bituca com os dedos e apesar de estar com um tamanho mínimo,
retirou um saco plástico, destes de açúcar, onde havia palha, fumo, uma caixa
de fósforos e vário pedaços de pequenas bitucas e jogou aquele pedaço dentro.
- Dia,
meninos – saudou, sem se levantar – acordaram cedo pro trabaio... Animados
heim? - Bom dia – responderam todos quase ao mesmo tempo. - É, temos que dar um
jeito nesta louça antes da inspeção de campo – respondeu Pietro. - Pelo jeito
tão bastante animados, nunca tinha visto um bando deste de gurizada fazer este
tipo de coisa – disse levantando-se e se espreguiçando rapidamente, esticando
os braços – um trem meio maluco, um monte de turminha gritando e com umas
roupas esquisitas...
-
Somos escoteiros, viemos fazer um acampamento de tropa – disse Gago –o senhor é
daqui mesmo da região? - Sô sim, moro ali dispois daquele monte ali, vim ver se
num tinha gado perdido aqui pro lado da voçoroca. Por estas bandas tem um
pastinho bão e o gado as veiz dá uns perdido prestas bandas – puxou um pouco a
rédea e passou a mão pela crina do cavalo – a voçoroca é meio perigosa, de veiz
em quando some um gado por lá... Cês tem que tomar cuidado, lá é meio perigoso,
até adulto já caiu lá. Evitem andar por aquelas banda. - É mesmo? – indagou
Leco, pensando no perigo que haviam corrido – já caiu gente lá?
-
Bão, já escuitei vários causos, pelo menos uma pessoa eu tenho certeza, uma
senhorinha que morava ali detraiz, subindo o carriadô de boi – disse apontando
para uma estradinha no alto do morrinho um pouco mais à frente do local onde
estavam acampados – coitada, veio catá goiaba pra fazer um doce, ninguém sabe
direito como aconteceu, uns dizem que ela escorregou outros dizem que ele deve
ter passado mal, enfim, foram achar ela uns par de dia dispois. Eu inté evito
de andar muito perto de lá, enterraram a coitada lá perto mesmo, num
descampadinho que fica na beira da voçoroca.
Os
meninos se olharam arrepiados com a história, olhos arregalados, Gago soltou a
borda da bacia que estava segurando e as louças rolaram pelo chão, assustando o
cavalo. Por sorte, o vaqueiro mantinha as rédeas fortemente presas à mão. Leco
e Gago se agacharam e rapidamente começaram a juntar as louças esparramadas
pela areia do córrego, jogando-as atabalhoadamente de volta à bacia sem tirar
os olhos do vaqueiro.
Um pensamento veio na cabeça de Pietro e uma frase começou a
martelar a mente – “agradeçam a Deus, ele
torna tudo possível” - não, com certeza era uma simples coincidência, não
poderia ser o que os três, com certeza, estavam pensando.
- Co-como e-ela se se se chama- chamava? – quase cuspiu as
palavras, gaguejando além do normal, um apavorado Gago, como se não quisesse
ouvir a resposta. - Dona Lola, que Deus a tenha – disse levantando brevemente a
aba do chapéu, num gesto de respeito.
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