Conversa ao Pé do Fogo.
A técnica mateira da Vovó Escoteira.
- Chefe! Minha avó chegou
hoje e vai embora amanhã. Eu gostaria que o senhor a conhecesse. Olhe ela foi
escoteira há muito tempo atrás. – Olhei para Georgia e não pude dizer não. A
reunião tinha chegado ao fim e a casa dela era próxima. Entramos e vi um casal
de idosos sentados na poltrona da sala. Educadamente se levantaram e me
cumprimentaram. Ela a Vovó me olhou de cima em baixo: - Pelo menos está bem
uniformizado disse. – Delfim seu esposo riu. – Desculpe Chefe, ela adora
lembrar seus tempos de escotismo. Ela não se fez de rogada. – Meu caro Chefe,
disse, afinal ou você está ou não está uniformizado! Falar o que? Sentei em uma
banqueta e Georgia foi preparar um café para nós. Não podia faltar. – A Senhora
foi Chefe onde? – Ela me cortou dizendo: - Meu nome é Ana. Chame-me assim ou se
quiser Chefe Ana!
- Eu fui escoteira,
guia e pioneira. Fui Chefe por mais de 50 anos. Ah! Esqueci também fui azulão!
– Lobinho Chefe, Lobinha! Quando passei para escoteira a chefia o nosso Chefe
de Grupo exigiu de mim algum que nunca exigiu de ninguém. Fui obrigada com
muito prazer a aprender o Código Morse e eu mesmo fabriquei uma rústica cigarra
para treinamento com meu namorado. Semáfora eu tirei de letra. Mais de 45
letras por minuto. E olhe transmitindo e recebendo. Fiquei “bamba” no alfabeto
dos mudos-surdos. Ele me exigiu vinte jogos usando a Lei Escoteira e uma
palestra de quinze minutos sobre ela. Gostoso mesmo foi o Percurso de Gilwell
que eu fiz. Fiquei craque em mapas e croquis. Fiz um mapa em escala variável de
minha cidade até o Sítio do Redentor. Aceitei o desafio dele para fazer dez nós
escoteiros com dois cadarços na boca usando a língua e os dentes! Kkkkkkk. Era demais!
Ana era demais.
Contava sorrindo sem se mostrar a tal. Chefe, quase fiz toda prova de primeira
classe. Dei aulas em atividades de primeiros socorros. Ensinei a muitos jovens
a especialidade de Saúde e Socorrista. Aprendi em um acampamento a montar uma
tala e fiz um torniquete depois de uma sangria para retirar um veneno de cobra.
Olhei para ela estupefato. Fui uma especialista no uso do lenço. Tipoias sabia
fazer mais de oito tipos. Mostrei a ele vários tipos de maca e uma delas eu
montava em menos de três minutos! – Zózimo um monitor me ensinou a achar o Fio
de uma Lâmina e aprendi a afiar com perfeição. Todos os cuidados com o material
de sapa, desde lixar e olear não tinha segredos. Aprendi a fazer de olhos
fechados uma Amarra Quadrada, uma Diagonal ou Paralela sem esquecer a Tripé.
Fiz mais de seis tipos de costura de arremate sendo que uma delas desmanchava
em segundos ao fim do acampamento.
Durante dois meses fiz um estágio no Instituto Butantã, e aprendi a
reconhecer quais as Venenosas ou não. Ana dava um show em sua simplicidade. Eu
mesmo sendo um Insignia de Madeira com muitos anos de escotismo não tinha todo
aquele conhecimento. Ela adivinhando o que pensava continuou: - Comida Mateira
era fichinha e o Frango Frito no Barro tirei de letra. Café sem Coador perdeu a
graça, mas quando fiz pela primeira vez um Arroz sem Panelas ninguém acreditou.
Precisei provar! Aprendi com o tempo a armar qualquer barraca de olhos fechados
e acredite, a Bangalô com sua parafernália de tubos de armação eu decorei os
números um por um. Uma vez me desafiaram a construir uma Oca e dois índios
amigos ficaram embasbacados com meu acabamento. Nunca fiz nenhum curso de
Sobrevivência na Selva, mas era tranquilo a quantidade de Armadilhas que
aprendi a fazer. Era perita em achar nascentes e dominava a Cozinha da selva
com maestria.
Com seu Gil meu professor
de pioneirías aprendi a usar o Serrote e o Traçador. Fiz Pioneiras fantásticas.
A Ponte Levadiça, a casa do Escoteiro em um jequitibá de cem anos, um Ninho de
Águia, uma passagem secreta entre arvoredos, e tive a honra de ajudar a
Patrulha Quati a montar um acampamento suspenso e olhe, levamos água do
ribeirão até lá! Nossa mãe! Ana era demais. E ela continuou: - Com Mano Velho
aprendi Sinais de Pista não aqueles de amadores. Seguia qualquer Pista em
qualquer terreno. E olhe bem, poucos
tiveram a felicidade de ver o Crepúsculo em uma noite de inverno do alto de uma
montanha. Incrível a visão. Nunca abandonei minhas raízes. Fiz questão de
fazer o IM de Alcatéia, de Tropa, de Sênior e Pioneiro. Dirigente não. Nunca
pensei em ser uma. Não sei se hoje isto ainda existe, mas naquela época
escotismo era técnica sem esquecer o introito da formação moral e intelectual
do jovem.
- Meu caro Chefe, precisa
conhecer minha coleção de bússolas, tenho de mais de trinta países. Passei uma
semana junto a um astrônomo que me ajudou na arte de observação das estrelas.
Foi maravilhoso. Aprendi a orientação de maneira técnica. Com seu Júlio, um
amigo de papai que morava em uma fazenda dominei a maneira de se orientar pelas
árvores, pelas estrelas, e até mesmo pelos ninhos de diversos pássaros que
sempre construíam com a entrada virada para o Este. - Se um dia me der à honra
de uma visita em Moradas Novas, onde vivo irei mostrar ao senhor minha
biblioteca escoteira. Só literatura escoteira. Mais de trezentos livros aí
incluídos os de B-P que não foi fácil adquirir e tive que ir a Inglaterra para adquiri-los.
Tenho uma coleção de selos, de lenços e de anéis que agora chamam de arganéu.
Já deixei meu testamento de tudo que tenho para o Grupo Escoteiro onde nasci.
Vou doar uma infinidade de objetos que tenho. Afinal são seis bastões encordoados
com couro inglês, duas mantas com mais de quinhentos distintivos pregados em
cada uma e meus oito uniformes deste que entrei para o escotismo em 1946.
Ela se calou sorrindo. Eu
boquiaberto não sabia o que dizer. Delfin seu esposo pediu desculpas e a levou
para o quarto. Era hora dos famosos remédios que nós idosos não temos como
fugir. Georgia me serviu um cafezinho e parti. Disse a ela para despedir por
mim a sua Avó e seu Avó. – Por favor, diga para eles que só de ouvir aprendi
tanto que nunca mais esquecerei a lição de uma avó escoteira que sempre amou
aquilo que fez. . Educar, formar caráter, espirito de iniciativa,
formação espiritual, bons cidadãos. “E fui pensando, pensando até que me dei
conta que eu tinha muito ainda que aprender”!
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