Onde a virtude estiver em grau eminente, verás que é perseguida; poucos,
ou nenhum, dos famosos varões que passaram na terra, deixaram de ser caluniados
pela malícia.
O incrível
exército de Brancaleone ou Dom Quixote de La Mancha
Não
sabia quanto tempo eu estava ali na Sala Grande. Acho que mais de duas horas.
Sentado no meu banquinho de três pés olhando o "Velho" Escoteiro e
sentindo nele que seus sonhos estavam sendo aos poucos esvaídos. Eu pensava e
meditava o que seria de minha vida sem ele. Não só a Escoteira. Tinha uma
esposa, vivíamos harmoniosamente, ainda sem filhos, mas eu gostava mesmo era de
estar com o "Velho". Para dizer a verdade eu o amava mais que meu
pai. E a Vovó era minha segunda mãe. O "Velho" não era mais aquele
“briguento” de outrora. Naquele dia ele me dizia das suas lutas, dos seus
sonhos e seus moinhos de ventos que não levaram a nada. "Velho", meu
"Velho" Chefe e amigo, desistindo?
- Seus olhos já não brilhavam
mais. Aquela força que tinha eu não via em suas palavras. - Olhe, ele disse, sempre
fiquei em dúvida onde me posicionar. Você sabe e me conhece. Vivi um escotismo
bem diferente. Hoje nem sei o que pensar. Sempre tive de fazer escolhas. De um
lado meu herói Brancaleone. Do outro meu querido Dom Quixote. Um mostra as
estruturas políticas, religiosas, culturais e mentais da época. Brancaleone, um
cavaleiro que apesar do título vive em uma cabana pobre e se diverte com seu
insubordinado cavalo Aquilante e brinca com a hierarquia medieval onde o mais
importante era a situação financeira e a classe social. Outro é Dom Quixote, já
de certa idade, entrega-se a leitura de romances, perde o juízo e acredito que
o que leu é verdadeiro e decide tornar-se um cavaleiro andante. Enquanto ele
vai narrando seus feitos Cervantes (o historiador) satiriza os preceitos que
regiam as histórias fantasiosas daqueles heróis de fancaria. Mas seriam
fantasiosas?
"Velho", não estou
entendendo você. Aonde quer chegar? Porque tudo isto? Olhem para dizer a
verdade se eu não conhecesse o "Velho" poderia dizer que ele estava
dizendo o nada com nada. Quem sabe sua senilidade estava chegando?
- Boa pergunta. Porque isto tudo? – Porque
me sinto no meio dos dois. Poderia ser Brancaleone onde critico as estruturas
da UEB sem satirizar é claro, pois só desejo o seu crescimento sadio. Ou quem
sabe melhor seria dom Quixote, pois alguns já disseram que perdi a razão e fico
a lutar junto com meu amigo Sancho Pança e é ele quem tem uma visão mais
realista das coisas. Dizem que minha luta contra os moinhos de vento seria
porque quero me transformar em um mito quixotesco. Não acredito nisto. Só sei que
a maioria dos meus amigos e amigas que me dão a honra de uma vez ou outra me
visitar e me ouvir, não gostam muito quando entro nesta seara e a minha moda vou
dando meus “pitacos” na “gigantesca” estrutura da UEB. Não acredito que ela possa
nos levar a um futuro venturoso. Eu sabia que no passado era uma luta inglória e
não me importava. Agora não sei.
- De vez em quando apareciam amigos e
amigas que empunhavam as armas e ficaram do meu lado. Eram poucos. A maioria ficou
do outro lado. As nuvens sopram de maneira diferente e eles estão satisfeitos
com a cartilha atual. Mas afinal meu chefe, eles me perguntavam - Qual é sua
luta? Boa pergunta. Quem sabe acabar com a ditadura do proletariado? Nada a ver
com a ideologia de Karl Marx, pois até que seria boa uma tomada do poder pelos
operários aqui denominados escotistas, pois só assim poderia se evitar esta
exploração capitalista. Não estão entendendo? Risos. Nem eu. Melhor seria dizer
que quando falo abertamente o que penso tento ao meu modo vender meu peixe a
todos. Mas sei que sempre foi uma pequena gota d’água. E eu acreditava que
poderia ser transformar em um grande lago azul.
Como seria bom se nos
congressos, conselhos, indabas, mutirões, assembleias se começasse a pensar em
mudar. Mudar as normas, estatutos, regimentos e se aos poucos fossem implantada
uma democracia direta, tipo democracia pura. Se fosse acontecer quem sabe assim
todos os membros dos quadros da UEB poderiam expressar suas vontades pelo voto
direto e até pela democracia representativa, poderiam expressar sua vontade por
meio de seus representantes eleitos pela vontade de todos.
Seria formidável que em vez de
0,5% dos que hoje tem este direito pudessem ser a maioria. De norte a sul todos
dando suas sugestões, opiniões e nada seria decidido sem uma grande pesquisa
nacional. Aí então o escotismo daria um salto de liberdade. Pois hoje não
acredito que tenhamos. Até acredito que haja uma conspiração silenciosa onde
cada um pode ser advertido ou repreendido se aderirem a ideias que não sejam as
definidas pela UEB. Conheço dezenas de escotistas que se afastaram de mim e
muitos deles me disseram que poderiam ser prejudicados. Eu sou prova viva da
história de um passado que se foi. Amigos que tentavam dar uma nova conotação
as normas que existiam na época (e que pouco mudou) foram gentilmente
convidados a se afastarem do meu convívio e minha “trupe”.
Muitos ainda não abriram os olhos para ver
os mandos e desmandos que tivemos no passado e ainda temos até hoje. Não
critico, pois entraram em um movimento onde se exige lealdade e onde a palavra
Servir a União dos Escoteiros do Brasil faz parte da promessa dos adultos. Dificilmente
irão notar que são seguidores. E ainda dizem que nosso movimento é um movimento
de liderança, onde ensinamos aos jovens as tomarem atitudes por sí mesmo.
Interessante que o Próprio Baden Powell dizia que devemos olhar alem da ponta
do nariz e em seus escritos falou muito sobre democracia e escolha.
Eu olhava para o "Velho"
Escoteiro pensativo. Oitenta e sete anos não era brincadeira. Mas eu sabia que
muitas vezes ele pecava pelos seus pensamentos e ideias e muitas delas passavam
de longe do que pensavam os dirigentes. Tudo bem que ele tinha um passado.
Viveu um escotismo diferente, mas por um instante será que ele não tinha razão?
Seria razoável fazer uma eleição livre? Amigos meus diziam ser impossível.
Impossível? Com os meios de comunicação que temos? Com as regiões? Com os
distritos? Não seria uma forma de criticar esta possibilidade uma maneira de
permanecer no poder? Ou então se considerar acima dos demais? Quem sabe um Zé
Ninguém poderia ser eleito? E se fosse? Mas isto não é democrático?
O "Velho" Escoteiro
parecia dormitar em sua poltrona de vime já gasta com o tempo. Lembrei-me das
histórias que me contou, do seu amigo mexicano, do americano, do francês, do
inglês e do suíço. Foram muitas aventuras. Sabia que ele tinha participado de
quatro jamborees internacionais. Sabia dos seus conhecimentos. Pelo que saiba
nunca escreveu nenhum livro. Claro tinha centenas de manuscritos. Uma vida
Escoteira se encerrado ali na mente daquele "Velho" Escoteiro. Assim
como outros iguais a eles, que um dia se foram e não são mais lembrados pelas
suas ideias. Tenho uma certa mágoa com os dirigentes. Valorizam somente que
está do lado deles. Faz parte do ser humano. Sempre buscando os holofotes. E
mesmo sem eles se sentem satisfeitos quando sabem do poder que tem nas mãos. E
que poder. Um amigo me disse uma vez que era o poder do nada.
A Vovó entrou na sala. Viu o
"Velho" escoteiro dormindo. Olhou-me com um sorriso meio sem jeito. Disse-me
que agora era sempre assim. Dormia na sua poltrona de vime já gasta com o
tempo. Ela sabia que não ia durar muito. De leve o tocou no ombro e o chamou. Ele acordou,
virou para mim e disse – Sabe meu amigo, eu gosto muito de você, muito. E foi
para seu quarto claudicando. Despedi da Vovó e fui embora. Meu tempo estava
sendo contado. Minhas horas com o "Velho" também. Sabia que um dia
não teria ele para me contar seus pensamentos escoteiros, suas aventuras, suas
extraordinárias atividades que junto a muitos fez por este brasil. Iria sentir
falta. Muita. Escoteiros como ele estão desaparecendo da história. Aqueles que
nasceram e morreram no escotismo pode ser contado a dedo. Quantos ainda estão
por aí é difícil dizer.
Estava chovendo. Tinha ido a pé
para a casa do "Velho". Que se dane a chuva. Sem correr percorri os
três quarteirões que me distanciava da casa dele até a minha. Vazia a rua. A
chuva varria o asfalto e um vento forte me pegou de jeito. Agora era correr.
Entrei em casa encharcado. Mais um dia, mais uma noite e quantas ainda teria na
companhia dele? Melhor dormir. O futuro a Deus pertence!
O medo é que faz que não vejas, nem ouças porque um dos efeitos do medo
é turvar os sentidos, e fazer que pareçam as coisas outras do que são!
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