O
Magnifico Milagre na Montanha da Águia azul.
Uma vez que você
tenha experimentado voar, você andará pela terra com seus olhos voltados para
céu, pois lá você esteve e para lá você desejará voltar.
Um feriado sem graça. Abri a geladeira
e fiz um lanche. Dei-me ao luxo de abrir uma cerveja. Minha esposa tinha saído.
Era sempre assim nos feriados de meios de semana. Fiquei pensando na reunião
marcada no Grupo Escoteiro à tarde com o Conselho da Tropa Sênior. Eles não
queriam aceitar a Tropa de Guias junto com eles, renovar as patrulhas, quem
sabe algumas com outro nome. Conviver com elas na mesma patrulha. A mesma coisa
pensavam as guias. Enfim um tema que daria uma boa discussão. Pretendia ir.
Afinal era assistente Sênior. Risos. Sei que estão pensando – Afinal você é
insígnia Escoteira e Sênior e ainda é assistente?
Interessante mesmo. Nunca me preocupei
com isso. Poderia sim ser o Chefe da tropa. Mas o efetivo era um amigão, estava
na tropa a mais de onze anos. Agora a pouco foi que consegui terminar e receber
a Insígnia Sênior. Esperei dar duas da tarde e fui a pé mesmo para o Grupo. Era
perto. Menos de cinco quarteirões. Precisava caminhar. Pediram o uniforme
caqui. Claro, adoro este uniforme e a calça curta me faz bem.
Não foi agradável o Conselho da tropa
Sênior. Eles estavam exaltados e as moças também. Depois de discussões
intermináveis, resolveram que as tropas seriam unificadas, mas com liberdade na
patrulha. Elas com as suas e eles também. Claro que não era fácil agir de outra
maneira. A tropa de guias tinha duas patrulhas e os seniores três. Um caso
inusitado. Cinco patrulhas em uma tropa. Mas porque isso? Dificuldade na chefia de
guias. Eram três inicialmente e agora só uma. Mesmo assim a atual pretendia
fazer um MBA (Master Business Administration, ou melhor, Mestre em
Administração de Negócios) e seria nos Estados Unidos.
O Diretor Técnico foi incisivo. Aceito mas
a tropa terá que ter uma assistente feminina, caso contrario não seria possível
fazer a unificação. Os chefes ficaram encarregados de convites a alguma
pioneira ou mesmo a alguma mãe. Foi uma reunião extenuante. Começou às duas da
tarde e só foi terminar às cinco e meia. Saí da sede e pensei – Porque não ir
para a casa do "Velho" Escoteiro? Mais seis quarteirões e às seis da
tarde em ponto subi os cinco degraus que dava a varanda da casa do
"Velho".
Não sei se ele me esperava, mas o som de
Vivaldi (Antônio Lucio Vivaldi – 1678/1741) Le quatro stagioni (as Quatro
Estações) tocava suavemente na vitrola antiga do "Velho". Pensei em
encontrá-lo a dormitar, pois era assim que ouvia seus prediletos, mas me
enganei. Estava sentado com a Vovó, num tete a tete gostoso, que eu sempre
admirei naquele casal. Juntos a mais de sessenta anos. Cumprimentei aos dois e
o "Velho" me olhou de soslaio.
Não sei se interrompi alguma coisa, pois
ao me verem pararam de conversar. Fiquei sem jeito. Apesar de mais de nove anos
frequentando a casa do "Velho" sempre me sentia um estranho. Só uma
vez subi no segundo andar quando o "Velho" passou mais de duas
semanas recolhido. Pedi desculpas por interromper. Eles deram boas risadas. –
Nada disso meu amigo ele disse, chegou na hora exata.
Interessante, pensava em comentar com o
"Velho" o tema que vivi hoje na Tropa Sênior e ele me apareceu com
outro. Bem diferente. Por esta eu não esperava. Nunca em tempo algum fiquei
sabendo do passado do "Velho". Não sei por que nunca perguntei. Desde
que o conheci vi que ele e a Vovó tinham uma química incrível. Seus olhares
eram doces, e pareciam dizer um ao outro, eu te amo. Para sempre.
Agora sim, estava entrando na vida deles.
Um sorria para o outro e ele dizia – Vovó, eu nunca esqueci. Ficou na minha
memoria. Uma parte da minha vida que valeu toda a minha existência. – Sabe
Escoteiro, a vida vale a pena ser vivida quando somos felizes. E quem não quer
ser feliz é porque não viveu seus sonhos como eu e a Vovó vivemos. Casamos em
outubro, em uma tarde linda que foi o dia mais feliz da minha vida. Casei com
ela com meu uniforme. A igreja cheia de escoteiros, pois tinha muitos amigos.
Demos uma pequena recepção no Clube Luzes e a meia noite partimos conforme
tínhamos programado.
Claro
já tínhamos preparado tudo. Vovó topou passar a lua de mel acampado na montanha
do Falcão Azul. Eu conhecia bem o local. Uma maravilhosa cascata, uma água
límpida que podíamos ver os peixes no fundo e uma gostosa brisa vinda das matas
verdejantes do pico do Pastor. Seria uma lua de mel diferente. Não sei se
alguém fez uma assim.
–
Vovó sorria e olhava o "Velho" com seu estilo de contador de história.
Ninguém foi contra – Ele continuou. Meus pais sabiam que eu adorava o escotismo
e a Vovó era, foi e sempre será a minha companheira nas minhas aventuras mesmo
não estando presente. Pegamos um taxi até a estação. O trem partiu às cinco da
manhã. Chegamos a Saltitério as nove. Eu
conhecia o caminho.
Partimos
não sem antes comprarmos mais algumas provisões, pois iriamos ficar lá quinze
dias. Tinha dito para a Vovó que nossas refeições seriam completadas com as
frutas e verduras que encontraríamos lá. Bananeiras, alguns pés de goiaba.
Limão e peixes à vontade. Você sabe, Vovó é uma cozinheira de mão cheia. Foi
uma subida e tanto. Eram mais de três da tarde quando avistamos o ninho da Águia
Azul. Eu assim tinha apelidado o local.
Os
primeiros dias foram para montagem do campo. Vovó era uma mateira de mão cheia.
Claro, quando namorávamos e depois que nós ficamos noivos eu tinha ensinado a
ela todos os truques de um bom “mateiro acampador”. Construímos um verdadeiro
lar onde poderíamos ali viver muitos anos. Um Banheiro com WC perfeito. Trouxemos
água por bambus até ele. Nossa cabana era de dar inveja. Uma cama casal, e
forrada com capim colonião junto com folhas de bananeira.
Se
chovesse poderíamos atravessar sem problema até nossa sala de visita/jantar,
onde fizemos uma linda poltrona e uma mesa rústica com bambus. O que deu
trabalho foi o forno, pois tive que andar bastante. Descobri um “barro branco”
especial na subida da Lagoinha. Perfeito para o forno. Como nos divertimos. Não
parávamos um só instante.
Excursionávamos pelas redondezas, banhos de
cachoeira varias vezes ao dia, cantorias à noite e sonhar com as estrelas
brilhantes no céu. Sabia localizar com facilidade a estrela Altair e Antares.
Mas disse para Vovó uma noite – Olhe Vovó – Aquela será a nossa estrela. Toda
vez que a ver, sabemos que ela é nossa. Fará parte da nossa vida para sempre!
Era a estrela de Capella. Onde um dia disseram que a vida floresceu.
Tudo
era maravilhoso. Incrível nossa lua de mel. Fazíamos amor na curva do rio, nas
trilhas do Pastor, deitados na relva onde sempre ficávamos até de madrugada. Um
dia fizemos amor debaixo de uma chuva torrencial. Uma experiência incrível. Não
havia relógio, tempo, nenhum som a não ser o cantar dos pássaros, o som gostoso
da cascata, o piar da coruja no carvalho, o farfalhar das árvores com o vento e
o bater de asas dos beija flores que se esbaldavam nas flores silvestres.
Vivíamos
em plena felicidade. Uma alegria sem fim. Tínhamos Deus como nossa proteção. O
perigo era quase nenhum. Não me lembro
bem, mas acho que foi no sexto dia que vi uma Águia Azul, enorme. Estava
pousada em um galho de uma bela figueira, frondosa e notamos que ela vinha
quase todos os dias. Sempre nos observando e olhe não tinha medo de nós. Várias
vezes ao dia ela abria as asas e pensei que tinha mais de um metro de
envergadura de uma ponta a outra.
No
decimo terceiro dia aconteceu o acidente que marcou nossa lua de mel Escoteira
e que nunca mais acho, haverá uma igual esta. Estamos abraçados no caminho do
campo do Pastor e avistamos umas flores diferentes e não consegui identificar.
A Vovó resolveu ir até lá e colher algumas. Ficamos ali por meia hora e no
retorno não percebi um barranco íngreme a nossa direita. Escorreguei, a Vovó
também. Caímos por mais de quarenta metros. O pior notei que tinha uma fratura
exposta no pé. Bem junto ao tornozelo. Vovó não teve nada a não ser uns
arranhões.
Sabia
que não tínhamos condição de subir. Era íngreme e do jeito que estava só mesmo
homens fortes para me tirar dali. Mas a Vovó não se entregou. – Você minha velha
sempre foi uma grande companheira. Eu nunca deixei de usar minha faca
Escoteira. Ela com a faca saiu e voltou com diversos galhos. Vovó era demais.
Não sei como, conseguiu também metros e metros de cipó trepadeira. O melhor
para amarras. Não foi rápida, mas conseguiu fazer uma pioneiria tipo biga, bem
forte. Antes fez uma espécie de tala. Doeu muito. Era uma dor incrível.
Olhava
para o "Velho" e a Vovó e eles sorriam um para o outro quando
contavam esta incrível narrativa que eu desconhecia da vida deles. Foi a Vovó
que continuou. – Não foi fácil fazer a biga. Mas era a minha única saída. Iria
amarrar o "Velho" nela e arrastar ali naquela fenda na rocha, pois
não sabia onde ia dar. Eu era magrinha, estava com dezoito anos, mas tinha
força. Tinha mesmo. Tudo pronto com o "Velho" amarrado olhei para um
lado, para o outro e vi a Águia azul pousada próximo a nós.
Parecia
fazer sinais com a cabeça, abriu as asas e seguiu rumo sul. Foi o caminho que
segui. Difícil à caminhada. Muito difícil. Arrastar o "Velho" não era
fácil. Andei uns trezentos metros e vi a Águia de novo. Ela fazia seu sinal,
levantou voo agora para noroeste. Lá fui eu no mesmo rumo. Mais duzentos
metros. Lá estava novamente a Águia a fazer sinais. Eu não aguentava mais. O
"Velho" gemia. Olhava para mim, sorria e gemia.
Sempre
insistia para deixa-lo ali e procurar ajuda. Mas eu sabia que não era fácil.
Sabia que a estrada estava a quilômetros dali. A noite chegou. Não tinha
percorrido nem um quilômetro naquela fenda. Resolvemos dormir ali. A perna do
"Velho" começou a inchar. Achei que iria chorar, mas o
"Velho" começou a cantar a “Terra do Belo Olmeiro” uma canção que ele
disse ter aprendido com escoteiros canadenses. Uma história linda, dos
caçadores de pele dos grandes lagos a procura de peles de castores que não mais
existiam. Acalmei-me. Dormi um pouco. Acordei de madrugada. Assustei, pois a Águia
estava ali bem perto de nos a fazer os mesmos sinais.
Resolvi
continuar mesmo no escuro. A Águia voava sobre a minha cabeça. De vez em quando
sumia e voltava. Andei a esmo, seguindo a Águia. Assustei-me. Vi a menos de cem
metros uma cabana. Incrível. Tinha claridade. Bati na porta. Dois homens
abriram. Eram caçadores. Ajudaram-me. Tinham uma mula. Levaram o
"Velho" para a cidade. Um deles me disse para não preocupar. Iriam
até nosso acampamento e levariam tudo para nós em Saltitério. Olhei para o alto
e lá estava a Águia Azul a voar e desta vez ela partiu.
Eu
sabia que ela não voltaria. Sabia que ela sentiu seu sangue de Águia correr em
suas veias e perfilou devagar suas asas partindo em um lindo voo até que
desapareceu no horizonte azul. Não tinha explicação por tudo que aconteceu. Mas
foi graças a Águia Azul que consegui chegar até a cabana. Chorei quando ela se
foi. Eu não disse adeus. Não sabia dizer muito obrigado a uma Águia.
O
"Velho" olhou para a Vovó. Depois olhou para mim. Olhe Escoteiro,
voltamos lá cinco anos depois. Nosso acampamento estava seco. A cabana tinha caído.
Ficamos lá por três dias. A Águia não apareceu. Vimos um casal de quati que
dormitava sempre próximo ao remanso da curva do riacho. Queria encontrá-la
novamente. Deveria haver uma forma de agradecer. Mas depois pensei bem e
cheguei à conclusão que ela era como nós. Fazemos nossa boa ação sem olhar a
quem. Sem esperar recompensas.
Fiquei
ali pensando em toda a história que o "Velho" e a Vovó me contaram. Uma
história sem precedentes. Eram eu sabia um casal maravilhoso. Nunca os vi
discutindo. Sempre um concordando com o outro. Sabia que o "Velho"
amava perdidamente a Vovó. E sabia que a Vovó amava perdidamente o
"Velho". Olhei para eles, estavam se beijando. Um beijo doce. Na
face, nos olhos nas orelhas e nos lábios. Estavam ali revivendo e vivendo
novamente uma lua de mel doce, suave, melódica e achei que era um intruso.
Sai
de mansinho. Abri o portão e parti para minha casa. A rua estava deserta. Havia
estrelas no céu. Procurei olhar bem, mas não sabia qual era a mais brilhante.
Gostaria de saber qual era a Altair, ou a Antares. Daria tudo para ver a
estrela brilhante de Capella. Sorri para mim mesmo. Meus pensamentos eram um
só. O "Velho" e a Vovó.
Deus
me deu muitas alegrias na vida. Mas agora eu sorria e agradecia a ele por ter
me dado à oportunidade conhecer a Vovó e o "Velho". Uma brisa forte
me acariciou o rosto. Um pingo de chuva bateu de leve em minha face. A chuva
chegou sorrateiramente. Sorri. Não corri. Deixei as gotas de chuva molharem
meus cabelos, minha face, meu corpo. Quem me visse achava que era um louco.
Pois debaixo da chuva sorria e cantava alto a pleno pulmões a “Terra do belo
Olmeiro” O "Velho" me ensinou. Gostava dela. O mundo é feito de doces
momentos e eu agora vivia a mais suprema felicidade do mundo.
ذ Terra do belo Olmeiro, lar do castor,
Lá onde o alce
airoso, é o senhor.
Ao lago azul
rochoso, eu voltarei de novo!
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