Lendas Escoteiras.
As aparências enganam.
(baseado em fatos reais)
Surgiu como um fantasma em nosso Grupo Escoteiro. 1966? Pode ser. Ele
não falava, gritava. Achava que todos ali naquela sala eram seus empregados.
Deixei o que estava fazendo e olhei para ele. – Gritou: - Quem é o Chefe aqui?
Meus amigos da diretoria olharam para mim preocupados. Melhor dizer que era eu.
– Sou eu disse! – Ele me olhou enviesado. Era forte, alto e uma enorme cicatriz
da orelha aos lábios. Briga na certa pensei. Cortado por faca! – Este é meu
filho! Vai ser Escoteiro. Não o trate bem, Ele precisa aprender a ser homem.
Façam o máximo de exigência, pois não gosto de meninos chorões. Não vou vir
buscá-lo. Ele tem de aprender a chegar em casa sozinho. Aqui vocês são responsáveis
por ele! – Deu meia volta e sumiu pela porta da sede do Grupo Escoteiro. Fiquei
pasmado, os amigos da diretoria também.
Olhei para o menino na porta. Onze anos? Pode ser. Raquítico, cabelos
negros bem penteado. Moreno e não sorria. Olhava para mim como se eu fosse mais
um desafio em sua vida. Não era assim e nem nunca foi o procedimento para
aceitar alguém no Grupo Escoteiro. Mandar o menino embora? Era o que devia ter
feito e não o fiz. Mandei o garoto sentar. Conversei calmamente com ele. – Seu
pai é assim? Ele respondeu – Meu pai é o que é e eu sou o que sou. Quando
começo? Pensei com meus botões. Por hoje sim. Amanhã não sei. Chamei o Chefe
dos escoteiros e expliquei da melhor maneira possível. Ele me olhou sorrindo e
disse: - Está com medo Chefe? – Sem resposta. Não iria mostrar o que sentia. Olhando
o menino que estava em posição de sentido olhando para mim, muito circunspecto
achei que teria que ser mais sensato. Só completei ao Chefe Escoteiro: O pai
dele vai aparecer. Vamos ver no que vai dar.
No
final da reunião Dinho (apelido do menino) foi embora sozinho. Antes de ir chegou
próximo a mim, fez pose militar e me deu um Sempre Alerta bem postado e falado.
Espantei-me com ele no seu primeiro dia. Fui para casa tentando controlar os
nervos. Fui a pé pensando. Na comunidade havia um certo respeito. Cheguei à
conclusão que não haveria uma segunda vez. Respeito é bom e eu gosto. Mal virei
à esquina e o vi no bar do Chico. Mesas e cadeiras espalhadas debaixo de uma
castanheira antiga, onde sempre me reunia com amigos. Ele bebericava uma
cerveja. Levantou-se e fez sinal para aproximar. Ora, ora! Fala-se no tinhoso e
ali estava ele. - Se não desse bola seria mal educado, se desse atenção poderia
ouvir o que não queria. Enfim entre o sim e entre o não me aproximei. Ficamos
conversando por horas. Ele me contou causos e causos. Já estava ficando
“borracho” e precisava ir para casa. Saí dali impressionado com que ouvi e vi.
Jiparanã se tornou um grande amigo e eu sabia que iria morar em meu coração para
sempre.
Um
dia chegou à sede e sem indagar ou perscrutar, aproximou de mim em uma reunião
e perguntou quando podia fazer o uniforme e onde compraria o chapéu e os
distintivos. Expliquei para ele que não era assim, havia normas, ele teria que
passar por elas. – Bolas para as normas – disse. E na semana seguinte apareceu
de uniforme surpreendendo a todos nós. Resolvi
relevar, daria tempo ao tempo. Pensei que breve ele iria submergir. Isto não
aconteceu. Por duas vezes sem avisar se inscreveu em cursos na capital e os fez
com seu rompante habitual. Mas fora isto era um excelente escotista. Dedicado,
organizado e prestativo. Ficou como meu assistente na Tropa Sênior e os jovens
o adoravam. Muitos jovens ficavam horas no seu estabelecimento comercial (açougue)
conversando e aprendendo com ele.
Surpreendeu-me nas atividades ao ar livre e
nos grandes acampamentos. Era um excelente mateiro. Os seniores embasbacados
com seus conhecimentos de sobrevivência na selva sorriam. Isto fez dele um
herói e garanto que não me senti ofendido. Para mim era magnífico. Em pouco
tempo eu iria embora da cidade. Seria ótimo contar com ele para me substituir.
Seu gênio foi aos poucos sendo contido. Um dia alguém gritou para ele que suas
pernas nuas abaixo da calça curta eram lindas. Ele se voltou e disse: - Você
acha bonita? Deve ser igual a da sua mãe! Porque não vem aqui olhar? – Claro
ninguém respondia. Seu estilo, seu bigode, sua altura, sua força não era para
ser arrostada. Meses depois fui embora. Cinco anos depois recebi um telegrama.
- Chefe Jiparanã foi preso e condenado a quinze anos de prisão. Não pestanejei,
era uma amizade que não tinha igual. Pedi licença na minha empresa por cinco
dias, peguei o trem noturno e voltei a minha antiga cidade.
O meu amigo Capitão Marlon me contou a história. Jiparanã estava em seu
açougue e chegaram dois bêbados rindo e debochando, falando que ele um
autêntico bicha e homossexual. Riram e completaram: seus escoteiros aprendem
com você a fazer assim? Você pode imaginar o que aconteceu. Jiparanã deu uma
tremenda surra nos dois. Foram parar no hospital. A história poderia ter
terminado ali, mas os dois borrachos em uma noite, o atacaram em uma esquina, e
mesmo ferido a faca em diversos lugares, matou um deles torcendo seu pescoço.
Claro que foi legítima defesa. Mas o que foi morto era de uma família rica que
contratou um advogado famoso para assessorar o promotor. O juiz não levou em
consideração o passado de Jiparanã. Ele sabia que ele era Escoteiro. Deu-lhe quinze
anos com possibilidade de sair em um cinco por bom comportamento. Fui visitar
Jiparanã na penitenciária. Ele estava sorridente, alegre e me recebeu com
regozijo, me abraçando e apresentando aos amigos da prisão.
Senti-me
forasteiro ali. Conversamos por horas. Antes de partir o visitei outra vez e
ele me disse que recebera uma carta da Direção Nacional, suspendendo-o das suas
atividades de escotista, e enquanto não fosse feito o inquérito habitual ele
não podia vestir o uniforme e participar de atividades afins. O Chefe do Grupo
me mandou uma correspondência, um ano depois, comentando o caso de Jiparanã.
Saiu da cadeia, e não voltou mais ao escotismo. A Direção Nacional o absolveu,
mas colocou ressalva na sua participação. Os seniores estavam com nova chefia,
mas apesar da proibição, Jiparanã ainda fazia atividades com eles, sem uniforme.
Sua arrogância foi esquecida. Agora cativante era outro Chefe. Seu filho passou
para os seniores e depois Pioneiro. Cuidava do açougue do pai.
Não
tive mais notícias. Minha vida mudou muito. Jiparanã deixou saudades. Foi para
mim um caso especial. Onde estiver e se ainda estiver vivo (deve estar com mais
de 80 anos) espero que tenha alcançado a felicidade que sempre mereceu. Fico
com saudades sempre que me lembro dele, Jiparanã, um saudoso valente cujo
espirito Escoteiro era verdadeiro e amava a seu modo o escotismo. Nem sempre conhecemos
os bons e os maus em profundidade. Se merecerem fazemos referências se são
amigos contamos histórias.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
obrigado pelos seus comentários