Conversa
ao pé do fogo.
Era uma
vez... Um "Velho" Escoteiro.
Eu estava ali, como fazia
todas as quintas feiras, na sala grande sentado no meu banquinho de três pés e
o "Velho" Escoteiro de olhos cemi cerrados na sua poltrona de vime,
já gasta com o tempo parecia dormitar. Os minutos corriam as horas também e
resolvi ir embora. O "Velho" nada dizia e como o conhecia de longa
data achei que estava num daqueles dias onde não falava, não ria e serrava os
olhos como se estivesse partindo para sua grande aventura no céu. Quantos anos
eu o conhecia? Muito tempo que nem sei como precisar. Sei que entrei por causa
dele. Eu o amava como se fosse meu pai. Amava também a Vovó sua esposa
incomparável. Ele beirando os oitenta e seis anos e ela com seus oitenta.
Levantei e falei baixinho – Fica com Deus "Velho" Escoteiro. Vou
deixar você só. Boa noite! Ele sem abrir os olhos falou com voz pausada e baixa
– Não vá. Não quero ficar sozinho agora!
Ele levantou com
dificuldade e vi que estava sério cabisbaixo e pensativo – Sem me perguntar
começou a falar: – Será que valeu a pena? Tenho me perguntado quase todos os
dias. Será que valeu a pena? Minha vida poderia ter sido outra. Quem sabe seria
bem melhor? – Não estava entendendo onde ele queria chegar. – Ele continuou – Você
me conheceu já adulto. Ficamos amigos. Hoje é praticamente o único amigo que eu
tenho. Nasci neste bairro, nesta casa, e quantas e quantas pessoas um dia
entraram por esta porta, sentaram nesta poltrona e me abraçaram? Onde estão
eles? – Dos que cresceram comigo se conta nos dedos os que se arriscam a me
visitar. Muitos do nosso Grupo Escoteiro se os quiser ver tenho que ir lá.
Lutei em todas as frentes possíveis para ver o escotismo ser reconhecido pela
nossa sociedade brasileira. Dei cursos, dirigi seminários, fiz milhares de
palestras por todo país.
- Houve uma época que
nós os adestradores tínhamos força na liderança nacional. Um dirigente que
ainda não participava junto com outros mudou os estatutos e o regimento e nos
deixou de fora. Sei que hoje eles não se incomodam com isto. Se sentem
satisfeitos com o “modus operandi” que atuam. Hoje formaram uma “casta” de
lords. Quando tinha forças eu participava nos Congressos que resolveram chamar
de Assembleias. Ali não se tem a palavra para dizer o que pensa. Tudo já estava
programado. Tento achar uma explicação para entender o que fizeram e até hoje
ainda sou um pensante sem ação. Fizeram as mudanças em séries. Tudo aquilo que
demorou anos para ser criado, efetivado e se tornado um hábito de comportamento
foi alterado.
- O Velho Escoteiro continuou:
- É meu amigo. A gente vai vivendo e vendo horrorizado isto que vem
acontecendo. Me sinto impotente. Uma vez um Escotista teve a audácia de me
dizer que existia o lugar próprio para reclamar, sugerir e mudar o que se
fizesse necessário. Falar o que para ele? Que participei dezenas de vezes, que
tudo ali já tinha sido discutido e aprovado em quatro paredes, que esta
conversa de ter voz e voto não tem nenhum sentido? E veja meu amigo. Com uma
tacada acharam que deveriam mudar o programa. Acharam. Meia dúzia achou.
Ninguém foi consultado. A escoteirada? Passaram longe. Tudo bem. Se queriam
mudar que mudassem, mas não, atrás do bem mais precioso que todo Escotista ou
Escoteiro daquela época lutou para conseguir. Lá foi a primeira e segunda
estrela. Lá foi a segunda e Primeira Classe. Lá foi as eficiências seniores. Prefiro
não continuar, pois mudaram demais. E os resultados?
- As bandeirantes tem uma lei federal que
diz que só ela pode ter meninas no escotismo. O maioral na época fingiu uma
aproximação e numa só tacada colocou as moças na associação. Até aí não
discuto. Acho que foi uma das boas coisas que aconteceram. E se não fossem
elas, nosso efetivo que eles dizem estar crescendo estaria pela metade. Observe
que elas crescem e os meninos diminuem. Não contente começaram a mudar também
normas e hierarquia. O poder acima de tudo. Enquanto na maioria dos países com
escotismo ainda tem o Comissário e o Escoteiro Chefe aqui não. Mudaram para
presidente e diretor. Nossa linguagem e apresentação acabou. Mudaram a flor de
lis, mudaram coisas que interpretávamos como imutáveis tais como a trilha, a
rota a ponte e continuam mudando. Não duvide se um dia mudarem a promessa. Já
ouvi buchichos que vão substituir os deveres para com Deus. Se os ingleses
mudaram porque não nós? - Dizem. E nossa identidade? Acabou?
- Olhei para o
"Velho" Escoteiro. Vi que ele estava com lágrimas nos olhos.
Precisava desabafar. Esqueci a hora. Precisava ficar ali com ele. – Sabe meu
amigo continuou – Dizem que quem controla o passado, controla o futuro. Quem
controla o presente controla o passado. Você eu sei pensa assim também – Não
disse nada. Fiz um gesto com a cabeça. Um cantor muito inteligente dizia que um
povo sem conhecimento, silencia seu passado histórico, origem e cultura, é como
uma arvore sem raízes. Ninguém mas ninguém mesmo disse alguma coisa nos últimos
trinta anos. Acostumaram. Aceitaram sem reclamar Dizem que temos uma legião silenciosa
se movimentando. É ver para crer. Mas vejo que a maioria tem medo de se expor.
Medo? Dirigentes colocando medo em voluntários que nada recebem? Aonde
chegamos?
- O pior meu amigo, é que muitos
que estão a mudar não têm nenhuma experiência no assunto. Esqueceram-se de
pesquisar entre os associados, nunca foram transparentes em suas ações,
resolveram entre si e pronto. As mudança aconteceram. A famosa BSA que dirige o
escotismo americano quando decidiam mudar alguma coisa sabe o que faziam?
Pegavam quatro ou cinco tropas, pois lá não tem o Grupo Escoteiro como unidade
e faziam experiências por anos com profissionais escoteiros observando e depois
vendo o resultado com o jovem já adulto. Só assim aplicavam mudanças. Aqui? Mudam
a bel prazer. Amanhã é assim. Conto a dedo estes membros do CAN e do DEN e
claro os formadores que podem dizer que estamos cumprindo a meta programada.
Gostaria de conhecer as experiência nos seus grupos de origem. O que vejo hoje
é novos aplaudindo o aprendizado em cursos e os mais antigos não encontro o
sucesso esperado. Cursos? Bem não faltam formadores. Existem aos milhares.
- O "Velho" Escoteiro
estava sentado de cabeça baixa. – Eu já contei para você que entrei como Lobinho,
fui Escoteiro e Monitor. Fui Sênior e Pioneiro. Rodei meio mundo. Os amigos que
fiz no exterior aqueles ainda vivos nunca deixaram de me escrever. Não posso
reclamar. Tive grandes aventuras. Você sabe. Já acampei mais de mil noites e
fiz tudo que sonhei junto à natureza. Hoje muitos pensam que estou no fim da
vida e não me convidam mais. Todos se
afastaram. Eu nem para aconselhar sirvo mais. Eu vi jovens crescerem e se
tornarem homens feitos na comunidade. Eu vi jovens que retornaram ao movimento
Escoteiro e hoje estão perplexo com as mudanças e muitos estão a desistir.
- O Velho Escoteiro taciturno
se calou. Ele um dia tinha me dito que ia dedicar à outra coisa. Iria cultivar
um jardim, iria ver as flores que agora não via mais. Desistiu de escrever
sobre escotismo, duvidava do alcance de suas palavras. Eu nunca soube como
dizer a ele como foi e é ainda importante. Sabia também que tínhamos muitos
dirigentes e formadores fanfarrões. Não eram a maioria, mas uns poucos
sabichões mandavam ao seu bel prazer. – O "Velho" Escoteiro fez o que
quase nunca fazia. Deu-me boa noite, chamou a Vovó que também se despediu de
mim e subiram abraçados a escada. Eu me considerava da família. Tinha uma chave
da casa. Saí, tranquei a porta e uma chuva torrencial começou a cair. Fui
correndo para minha casa a pé. Não deu tempo de pensar e analisar as palavras
do "Velho" Escoteiro. Deitei e sem perceber lágrimas começaram a cair
em meu rosto. Boa noite "Velho" Escoteiro. Boa noite Vovó.
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