Historias e estorias que não foram contadas

Historias e estorias que não foram contadas
uma foto, de um passado distante

domingo, 14 de janeiro de 2018

Lembranças. Eu já fui professor do... MOBRAL!


Lembranças.
Eu já fui professor do... MOBRAL!

                   Foi uma experiência fantástica. Ser professor e ver alunos como os que eu tive querendo aprender é uma situação agradabilíssima. Foi uma honra ser um professor, de pessoas humildes, quase todos acima de vinte anos e muitos de cinquenta a oitenta anos. Acredito que poucos se lembram do programa governamental de formação de adultos. Na época era chamado de MOBRAL (Movimento Brasileiro de Alfabetização) foi um projeto do governo brasileiro, criado pela Lei n° 5.379, de 15 de dezembro de 1967, e propunha a alfabetização funcional de jovens e adultos, visando "conduzir a pessoa humana a adquirir técnicas de leitura, escrita e cálculo como meio de integrá-la a sua comunidade, permitindo melhores condições de vida".

                      Pois é, eu fui um professor do MOBRAL. Se nas grandes cidades servia-se de pilherias e zombarias, onde eu estava era uma fonte da juventude para os que queriam aprender, apenas assinar um nome já era motivo de orgulho. Gerente de Uma Fazenda no Norte de Minas conhecia boa parte dos moradores da região, na maioria meeiros, pequenos sitiantes residentes próximos ao Rio das Velhas. Pessoas simples, sempre com um sorriso, a dizerem Senhor. Posso dizer com orgulho que tive a honra de ser padrinho de dezenas de crianças cujos pais me honraram com um convite.

                        Dois anos gerenciando a fazenda vivia em plena felicidade. O ar puro o silencio, as noites de causos, de conversas com os filhos e amigos que moravam próximo. Quando a noite chegava, adorava ver o mais lindo céu estrelado, o cantar dos passados e insetos noturnos e alguns veados campeiros correndo pela plantação de cana caiana. A luz era de um Velho “Jirico” (trator) com um motor potente acesa somente parte da noite. Uma geladeira a gás, uma TV cheia de chuvisco a bateria e três lampiões a gás. Não faltava um radinho para ouvir a Voz do Brasil.

                      Na varanda dava para ver o sol nascer ou se por. Acostumamos com os sapos cururu coaxando e os grilos esvoaçantes querendo chegar não sei onde. Já tinha lido sobre o MOBRAL e na prefeitura de Pirapora MG se prontificaram a me ajudar. Pensei por que não ter aqui na fazenda uma escola assim? Dito e feito, a ideia maturou e mãos a obra. Não pedi licença ao Presidente da Companhia, um erro meu, pois acreditava ser ele um nacionalista brasileiro e não seria contra a ter uma escola em sua propriedade. Afinal não havia gastos, pois tudo era fornecido pelo governo.

                       Quando comentei com os vaqueiros e alguns sitiantes a ideia correu como o vento pela redondeza. – “Seu Osvardo” eu quero participar... Faça um banquinho para você e apareça na próxima segunda feira. Fui atrás da responsável que me deu todo apoio possível. Até mesmo meio salario mínimo que ajudou a comprar materiais para a escola. Foi demais o primeiro dia.

                     As seis e meia da tarde começaram a chegar os “meus alunos”. De cada canto da fazenda eles surgiam a cavalo, de charrete, de bicicleta e a pé. Casais, homens e mulheres solteiras, até filhos no colo. Assustei com o numero, não esperava tantos interessados. Na primeira noite mais de quarenta, na segunda sessenta, na terceira chegamos a oitenta. Fechei as inscrições. A prefeitura de Pirapora não me negou os materiais faltantes.

                     Deram-me apostilas e aprendi muito a ensinar pessoas que não sabiam nem segurar um lápis. Foi divertido pegar nas mãos trôpegas de alunos idosos que durante o dia capinavam suas roças, faziam seus trabalhos de campo, plantavam, colhiam e ao lusco fusco da noite partiam em busca do saber. Foram seis meses maravilhosos. Começávamos as sete e terminávamos às dez da noite. O sorriso quase infantil de Dona Noêmia de setenta anos quando assinou seu nome foi demais.

                     Analfabeta assinava fazendo uma cruz ou mergulhando seu dedo em uma tinta para dizer que existia e que achava vergonhoso. Com quatro meses acreditei que eles poderiam ler e escrever. Muitos começaram a ler as cartilhas, alguns já fazendo seus exercícios com a tabuada decorada.

                  Recebi um recado do presidente da Companhia: – Louvável Osvaldo seu espirito em dar luz e saber a estas pessoas, ensinando a ler e a escrever. No entanto por motivos que irei comentar quando for ai, termine tudo. Feche a Escola. Tem duas semanas para isto! – Levei um choque. Não esperava dele tal atitude. Mudou minha concepção de homem empreendedor. Os alunos não acreditaram quando disse que a escola ia acabar. Houve choros, lágrimas. A noticia espalhou como um rastilho de pólvora e demorou para que eles entendessem que ele era o dono, tinha esse direito. Enfim, a escola acabou.

                   Mesmo sem escola muitos me procuravam em minha casa a noite ou fins de semana. Dei a atenção de pelo menos aprenderem a assinar o nome e até mesmo um bom dia boa noite ou boa tarde. No dia que fui embora da fazenda a sede da fazenda ficou cheia de amigos que vieram despedir. Ouvi as mais lindas expressões de agradecimento. Eu era um Chefe Escoteiro, sabia como conviver com adultos e pais. Mas como professor nunca tive a honra de ensinar o ABC. Foi demais, na partida lágrimas corriam a solta em meus olhos. Elas só pararam quando atravessei a Barragem de Três Marias quatro horas depois.

                        Não discuto e nem quero fazer uma celeuma das vantagens e desvantagens do MOBRAL. Se foi invenção de militares que assumiram o poder tudo bem, mas e dai? Olhar nos olhos de uma plêiade de pessoas sedentas em aprender, pessoas simples, humildes que não tiveram a oportunidade de ser alfabetizados foi demais. Nunca esqueci Dona Noêmia e seu sorriso quando assinou seu nome. Velhos tempos, um Velho Escoteiro não esquece. Só quem passou por isso pode entender o valor de uma assinatura.

Graças a Deus eu fui Professor de Mobral. Tenho grande orgulho de ter sido um!


Nota - Eu fui um professor do MOBRAL. Com muito orgulho. Como disse um poeta: - Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo. Abraços fraternos.

Um comentário:

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