Historias e estorias que não foram contadas

Historias e estorias que não foram contadas
uma foto, de um passado distante

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Saudades de minha barraca de duas lonas...


Crônicas de um Velho Chefe Escoteiro.
Saudades de minha barraca de duas lonas...

                Para nós não existia “outras”. Bangalô? Canadense? Iglu? Tubular? Geodésia? Deus me livre! Só vim a conhecer muitos e muitos anos depois. Tem cada uma moderna que só vendo. Soube que agora tem uma que você aperta um botão e ela enche de ar e aos poucos vai tomando forma. Lá dentro aparecem camas, tapetes, armários só não tem WC. Aí é querer demais. Meu amigo e tem graça isto? Bem se for fazer Camping tem. Mesmo eu que fui campista por anos, sócio do CCB e acampando  Brasil afora não sei se iria gostar dela. Sem fazer nada? Só dormir? Bah! Acho que não é minha praia. Boa mesmo, prá lá de “mais de boa” era a de duas lonas. Impecavelmente dividida para dois. Cabia tranquilamente dois ou mais Escoteiros. Já vi dormirem em noite de trovoadas e chuvas torrenciais cinco em uma! Muito? Bem a lama que correu nas outras barracas fez daquela uma mãe de todos.

                  Quem sabe você também sente saudades e já dormiu com elas. Conheceu as batutas que usando cipó e dois pedaços de madeira e seis espeques elas ficavam em pé. Bem para ser sincero era bom colocar mais dois espeques no meio e não se esquecer de fazer em volta um bom canal de chuva. Como? Um canalzinho pequeno, não mais de que quinze centímetros de profundidade, percorrendo toda circunferência da barraca. Assim feito não entrava água de chuva dentro. Diziam-me que chovendo e abrindo a porta se molha todo interior. Não sei não. Comigo não aconteceu. Meu Monitor me ensinou bem a abrir a porta e sair e entrar em um dos lados. Bem eu sei e você sabe que não tinha forro de chão. Forro? Bah! Para que se tinha capim a vontade? Tinham-se folhas secas caídas no chão e eram um verdadeiro  colchão? Neco Brinco de Ouro nosso sub me disse para comprar dois sacos de linguagem, qualquer um podia se o branco ou o de cânhamo e costurar um no outro. Depois era só encher de capim e teria uma cama melhor que tinha em meu quarto.

                   E para transportar? Simples demais. Bem dobrada fazia a volta na mochila e junto à capa de chuva se prendia com cabos firmes em presilha. Peso? Uma ninharia, bem menos que dois quilos. Claro eram duas lonas, uma comigo e outra para meu companheiro de patrulha. Armar era supimpa. Diziam naquela época que demorar mais de cinco minutos para armar uma era coisa de Pata-tenra! Era boa demais. Em jornadas ou caminhadas longas se chovia elas eram uma “pá na roda”. Servia para um descanso em baixo de uma árvore, servia para um travesseiro nas paradas de descanso, e se fosse demorar porque não armar? Cinco minutos! Isto mesmo. Soube de uma patrulha que armava em dois! É mentira “Terta”? Bem Escoteiros não mentem, eles tem uma só palavra e tem honra. Hoje sair para acampar é um “pé no saco” bem sei que tem as iglus, leves, vem embutidas em uma sacola e fácil de transportar. Mas Deus do céu! Um vendaval e lá vai ela pelos ares.

                  Teve uma época que depois de usar por anos elas começaram a embranquecer e perder a permeabilidade. Qualquer  chuvinha pingava dentro como telhas quebradas das taperas que parávamos para passar uma noite em um bivaque. Acho que foi Lomanto Cobra Cega quem nos ensinou como fazer. Ele era Motorista de um caminhão “Fenemê”, FNM, ou melhor, Fábrica Nacional de Motores. Caminhão brasileiro para ninguém botar defeito. Chamou Zequinha o Monitor e disse: - Procure o Curtume do Seu Palácios. Veja se ele pode doar a vocês um pouco de sebo de boi. Ele vem duro como pedra. Coloque em uma vasilha e deixar virar mel. Pegue uma escova de engraxar sapatos, vai molhando e passando na barraca. Depois deixe secar, mas não no sol. Na sombra. Faça isto quatro vezes espaçadamente. A lona nunca mais vai deixar a água de chuva passar!

                    Dito e feito. Foi supimpa. A gente sorria e partia para nossos acampamentos de fins de semana mais tranquilos. Mas teve um dia que uma surpresa aconteceu. Gente! Foi bom demais. Ninguém acreditou e até assustou quando um Fenemê do 6º Batalhão de Infantaria parou na porta do grupo. – O que foi? Quem vai acampar? Ora sempre o Capitão Barbosinha com sua gentileza nos dava o transporte que precisávamos. Mas não era isto. Um cabo mal criado gritou – Ou vem ajudar ou vou levar esta M... De volta! Fomos ver e olhe, lá tinha dezenas de barracas, cantis, mais de cem mochilas de soldados, de oficiais, tinha lá dentro tudo que a gente precisava para nossa intendência e nosso material de sapa. A Escoteirada em pouco tempo descarregou o caminhão. Chefe João Soldado chegou sorridente. - Foi o Capitão Barbosinha? – Foi Chefe! Gente boa ele, disse. Já foi Escoteiro na capital!

              Nossa patrulha recebeu seu quinhão. Quatro barracas de duas lonas novinhas. Uma mochila nova para cada Escoteiro. O cantil não me interessou muito. Tinha o meu francês. Adorava ele. So fiquei com um caneco de campo que servia para tudo. Fazer café, guardar sopa, e armazenar água. Olhe, este material serviu ao grupo por mais de vinte anos. Tempos bons, tempos que os batalhões descarregavam materiais usados a cada quatro anos. Tivemos a sorte de ter amigos oficiais e soldados lá. Hoje me orgulho em ter ficado nove meses como recruta, pensei em ser um oficial da PM. Não deu certo, uma noite de guarda um aspirante a oficial me deu nos “cocos”. Um meninote! Fazendo-me de besta e querendo gosar da minha cara! Não deu outra. Fui parar no alojamento preso por uma semana. Melhor pedir baixa. Fui aconselhado a continuar. Faltava pouco para a escolha dos que iriam para a capital fazer o CFO. Bem a vida de cada um é de cada um. A minha não foi ser um oficial da Policia Militar o que teria me dado grande orgulho.

                       Quando fui fazer meu primeiro curso Escoteiro entrando nos meus dezoito anos, lá pelos idos de 1959, levei na mochila minha barraca de duas lonas. Levei as duas bem dobradas na mochila. Cheguei lá e disseram que não. JF um dos dirigentes disse que tinha para cada patrulha uma de oficiais, cabiam oito tranquilos. Ainda teria preferido armar a minha, mas melhor não discutir. O tempo passou e eu passei com ele. As barracas de duas lonas foram sumindo no tempo. As iglus da vida aparecendo. Ceda de manteiga eu as chamava. Qualquer coisa rasgavam. Não aguentavam belas chuvas e ventos. E eu amava antes durante e depois de um lindo vendaval. Chuva na terra, cheiro de terra molhada, mata encharcada, poças d’água recebendo visita de pássaros, insetos voadores, borboletas voando em circulo. Hoje não faço mais, mas guardo na lembrança para sempre minha adorada barraca de duas lonas. Ainda sonho com elas, sonho na Mata do Morcego, na Montanha do Beija Flor. Nas margens do Rio Doce, do Rio das Velhas, em terras desconhecidas por onde passei.


Saudades... Muitas saudades de minha barraca de duas lonas!

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