Historias e estorias que não foram contadas

Historias e estorias que não foram contadas
uma foto, de um passado distante

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O 'VELHO" ESCOTEIRO E OS AVENTUREIROS DO VALE DA MORTE - FÁSC. 59 E 60


O “Velho” Escoteiro e os Aventureiros do Vale da Morte – Fasc.59
"O sentido da vida consiste em que não tem nenhum sentido dizer que a vida não tem sentido."
(Niels Bohr)

AOS MEUS AMIGOS QUE FAZEM ESCOTISMO FORA DOS QUADROS DA UEB

Tirei 15 dias de férias. Estava precisando. Afinal fazia quase dois meses que viajava constantemente, trabalhando por todo o país e até minha filha por telefone reclamava. Quiçá a minha cara metade. Os diretores da empresa compreenderam perfeitamente. Voltei as lides de pai de família, de Chefe Escoteiro e de passear em parques, shoppings, enfim fazer tudo aquilo que minha filha pedia e satisfazer seus desejos nos seus mais humildes detalhes.
Lininha tinha nove anos. Loira, magrinha, esperta, boas notas na escola, as professoras sempre a elogiaram pela sua conduta. Isto fazia com que eu me tornasse o mais orgulhoso dos pais. Não sei por que, ficou menos de seis meses como lobinha. Não se interessou em continuar. Deixei que ela escolhesse e quem sabe quando tivesse mais idade se motivaria em voltar.
Na tropa Escoteira que colaborava como assistente, nada tinha mudado. O Chefe era muito competente. Mesmo de vez em quando comentando com ele de minhas viagens, as historias fantásticas que me contavam meus contatos com diversos outros grupos e outros chefes, ele sorria, não perguntava e de um passávamos para outro assunto. Notei que quatro novos escoteiros tinham entrado e assim foi formada a quarta patrulha.
Mas como diz o velho ditado, o que é bom dura pouco. Fui chamado com urgência no décimo dia de minhas férias, pelo Presidente da empresa. Quando ele ligava, sabia que o assunto era urgente. Uma empresa sediada na capital de um estado estava querendo construir 15 grandes tornos revolver ou copiadores, com a tecnologia mais avançada inclusive se fosse possível informatizada.
Deveria ter bancadas com possibilidades de um funcionário esquematizar através de programas computadorizados, ou então robotizados, confeccionar e fazer à usinagem de peças destinadas a empresa aeronáutica, de altíssima precisão. Foram descartados tornos mecânicos considerados ultrapassados.
Eu sabia que uma de nossas fábricas tinha tecnologia para isto, e como seria um contrato a longo prazo, poderíamos ser os fornecedores. Para isto deveria entrar em contato com eles o mais urgente possível. Se conseguisse fechar o contrato seria um dos melhores dos últimos anos. Viajei naquele mesmo dia à tarde. Liguei para a nossa filial para tentar marcar uma reunião no dia seguinte com a empresa interessada.
Foram cinco dias percorrendo suas instalações, vendo suas necessidades, anotando, escrevendo, desenhando, conversando por telefone com nossa fábrica e o contrato estava praticamente fechado. Pequenos pormenores estavam emperrando o termino de minha visita e que foi rapidamente sanado com o surgimento de um novo personagem da fabrica, um jovem simpático, dos seus 28 anos, muito educado e prestativo. Conhecia como ninguém o produto que procuravam, e foi fácil daí em diante montar o pedido que por sinal era de grande porte.
Surpresa. Durante o almoço disse-me que participava do Movimento Escoteiro. Conversa vai conversa vem, contou-me sobre o seu Grupo Escoteiro, suas sessões e que era assistente Sênior. Mais surpreso ainda fiquei quando me contou que possuía a Insígnia de Escoteiros, Seniores, e estava terminando a de Chefe de Grupo. Caramba! Disse. Assistente? Afinal os demais escotistas do grupo devem ser da melhor qualidade.
Ele sorriu humildemente dizendo que não. Devido aos seus afazeres na fábrica, o seu tempo era insuficiente e para não prejudicar a sessão ficou como assistente. Razões que não concordei muito. Com tal cabedal, deveria até ser o Chefe do Grupo. Nossa conversa se prolongou pela noite. Quando lhe contei do meu livro de contos ele me convidou para conhecer um Escotista, idoso, com profundos conhecimentos escoteiros, que viveu histórias incríveis e sem sombra de dúvida, um dos melhores do pais.
Com 87 anos, participou de quase tudo que o Escotismo Brasileiro realizou. “Tirou” sua primeira insígnia em 1947 em Giwell Park e conheceu BP quando de uma rápida passagem em Londres antes da guerra. Participou de diversos Jamborees – Ele para mim disse o Chefe Escoteiro – é o meu “Guru” e mesmo não podendo participar diretamente, influía ainda nos destinos do movimento, com seus senões, seus acertos e seus “pitacos” nas diversas áreas do escotismo.
Falou deste antigo escoteiro com tanta veemência, que achei possível esticar mais um fim de semana e visitá-lo, pois quem sabe ele teria também uma boa historia para contar e levar as páginas dos meus Contos Escoteiros que pretendia publicar em breve.  
Combinamos nos encontrar as 14 hs do sábado seguinte, no Grupo Escoteiro onde ele atuava. De lá iríamos para a casa do Velho Escoteiro. Cheguei pontualmente. Era meu costume. Se marcarmos as 14 era para ser as 14 e pronto. Ele também como eu tinha uma pontualidade “britânica”. Gostei do que vi. Uma grande fraternidade com objetivos técnicos definidos e um corpo de escotistas muito bem formados.
Ficamos por ali até as 18 horas. Fui apresentado a todos os escotistas, patrulhas e fiquei conversando com o Chefe do Grupo, que me presenteou com um lenço do qual agradeci. Prometi enviar um do meu Grupo a ele o mais rápido possível. Ao sairmos, vi que os jovens já tinham partido com exceção do Clã pioneiro que chegava de uma atividade e iriam discutir assuntos já previamente preparados.
No veículo do chefe escoteiro, nos dirigimos à casa do “Velho” como o chamavam. Não gostava de tal apelido, pois o achava meio desrespeitoso, principalmente com alguém da terceira idade. Não me disse o nome dele. Preferi não perguntar. A casa era muito simpática. Uma bela varanda, onde se avistava uma pequena montanha ao longe, que ainda permanecia virgem com suas matas nativas.
O “Velho” não veio nos receber a porta. O meu amigo chefe escoteiro disse que era assim mesmo. Que não me preocupasse, pois sempre demonstrava pouco interesse no inicio. Talvez a idade já estivesse surtindo o efeito da esquizofrenia, própria de quem teve uma vida agitada e hoje aposentado, sente a falta de tudo aquilo que fez e construiu um dia.
Entramos sem bater. Lá estava a figura. Imponente! Levantou-se, aprumado, e em posição de sentido, batendo os calcanhares nos disse “Sempre Alerta”. Alto, bem magro, cabelos brancos por cima das orelhas, olhos azuis, faiscantes, um sorriso encantador.
Estava de uniforme. E que uniforme! Impecável! Só não usava o chapéu que vi em uma parede dentro de uma porta chapéu, muito bem feito que conservasse aquele que deveria ter sido o seu companheiro por anos e anos. Não usava barretes, medalhas, nada. Somente o distintivo de Promessa e o de sua região. Curiosamente estava portando o bastão de comando e o mantinha preso dentro dos padrões ingleses debaixo do braço direito.
- Tem 35 anos. Disse – Não entendi. O que tem 35 anos? Perguntei – o chapéu respondeu. Como você o olhou, adivinhei. Muito bom, ainda conserva todo seu esplendor eu disse. – Olhe meu jovem, este é o primeiro. O perdi em uma viagem de trem ao México em 1976. Estava indo a um Acampamento Internacional de Patrulhas que seria realizado em Piedras Negras, Coahuila. Fica na fronteira dos EUA-Mexico próximo a cidade de Eagle Pass no Texas.
Quando atravessávamos a ponte Union Pacific Railroad Bridge Internacional, uma ponte famosa, um dos chefes que estavam conosco gritou que observássemos a garganta enorme entre duas montanhas que estávamos serpenteado e eu um perfeito idiota, metí a cabeça para fora e lá se foi o meu chapéu. Voava como um pássaro levado pelo vento. Não chorei, mas a aflição veio de chofre.
- Puxei a cordinha de emergência e o trem parou. Foi um Deus nos acuda. Desci e voltei uns 200 metros atrás próximo à ponte para ver se o encontrava. Infelizmente ele tinha desaparecido. Como uma enorme ventania se formou, e vi que uma forte chuva estava se aproximando, voltei ao trem. O condutor e o maquinista estavam aos gritos dizendo que iriam mandar me prender. - “Que os Diabos o carreguem”, que me prendam, disse. Afinal tinha que tentar recuperar o meu chapéu.
- O Escoteiro Chefe do México me presenteou com outro chapéu. Não disse nada, mas ao voltar, o guardei nas minhas “memórias escoteiras” que possuo em um quarto que foi de minha filha antes de casar e claro, comprei um legítimo Prada aqui fabricado. Este sim é o verdadeiro Chapéu Escoteiro de três bicos. Ele está guardado no meu guarda roupa. Só uso quando em atividade escoteira. Este que você está vendo, é o primeiro. O que sumiu na estação do México.  Encontraram-no e despacharam para mim, pois prometi que se isto acontecesse daria uma “boa gorjeta”
- Gostei do “Velho”. Não tinha nada de esquizofrênico. Sabia cativar como ninguém, com seu palavreado franco e usando metáforas que mostravam um conhecimento técnico escoteiro da melhor qualidade. – Olhe ele disse – Entrei como lobinho com sete anos. Nunca saí. Portanto tenho que conhecer bem este movimento que sempre foi a minha razão de viver. – Caramba! Pensei. Não sabia que também lia os pensamentos!
Foi então que adentrou a sala, uma senhora de cabelos brancos, penteados em estilo anos 50, com um sorriso encantador e empurrando um carrinho cheio de guloseimas, cantando baixinho me cumprimentou de uma maneira tão carinhosa, que poderia jurar que já tinha me conhecido há anos. – Minha esposa disse apresentando, todos a chamam de Vovó. Que família formidável. Gostaria de ter conhecido sua filha. Era um premio conviver com pessoas assim.
- Desculpe o uniforme – falou o “Velho”. Disseram-me de sua visita. Achei que viria também uniformizado e me preparei para recebê-lo com deveria. Sorri meio sem jeito. Vamos tomar um café, comer alguma coisa e depois vamos conversar sobre o escotismo, e se quiser, vou contar algumas histórias minhas, pois olhando para você, vejo que é um rapaz que não participa muito, mas tem a paixão como todos nós pelo escotismo. Acredito também que é metido a escritor, não?
De novo não sabia o que dizer. Calei-me. Tomamos um café e surpresa: - nunca tinha comido tão deliciosos pães de queijo e biscoitos de polvilho como aqueles. Incrível! Eram mesmo deliciosos. A Vovó sorria e me perguntava sobre minha família. Conversamos alguns minutos e o “Velho” me “mandou” sentar. Aí não disse – É o meu lugar (era uma poltrona de vime já gasta com o tempo). Sente ali do outro lado. Franco e objetivo. Sabia que tinha este direito. Era sua casa. O Chefe Escoteiro sentou em um banquinho de madeira de três pés.
- Olhe meu amigo – falava o “Velho”, tenho orgulho de ter participado e ainda me considero um participante desta grande Fraternidade Mundial. O Escotismo foi e sempre será para mim tudo aquilo que desejei na vida. E junto com a Vovó, minha filha e meus dois netos me sinto realizado. Hoje não sou como antes. Minha casa vivia cheia de escoteiros e escotistas. Sumiram, mas não reclamo. Ainda aparecem alguns “gatos pingados” que não me esquecem.
- São sempre bem-vindos. Se quiserem sugestões, as dou. Se não só falamos do que eles interessam. Claro, sem futebol. Um jogo chato, onde 22 homens correm atrás de uma bola e você fica feito idiota sentado em uma arquibancada de cimento, gritando feito louco e sem poder participar diretamente. Depois me vêem dizer que é um esporte nacional! E olhe, ainda tem gente se matando pro isto. Esporte do grito isto sim!
Perguntei a ele se era verdade que tinha conhecido BP. – Claro, estava em Londres quando tinha 14 nos, de passagem para  o quinto Jamboree Mundial que seria realizado em Vogelezag. Bloemendaal, e soube que ele estava em visita ao escritório escoteiro local (WOSM – Organização Mundial do Movimento Escoteiro).
Consegui através de uma competição de cantores mirins em minha cidade, boa parte do que precisava. Cantava bem as músicas de Bob Nelson, claro você não conhece. O restante foi com meu trabalho de engraxate e um pequeno emprego que consegui na padaria do português, que também fora escoteiro em Portugal. Estava acompanhado de mais quinze membros brasileiros, muitos deles adultos.
Fomos de navio. Era mais barato. Foi uma viagem e tanto. - Quando vi o alvoroço da chegada de BP corri para lá e gritando “Brasil, Brasil! Ele me olhou se aproximou e sorrindo me cumprimentou. Foi minha apoteose. Ainda me disse várias palavras que não entendi, pois não falava o idioma inglês.
- A volta foi meio problemática. O mesmo navio que nos trouxeram resolveu aportar em Porto Príncipe para descarregar uma carga, e havia uma espécie de revolução, que prendeu o navio lá por dois meses. Tentei voltar por terra e não consegui. Afinal ainda era jovem e sem nenhuma experiência.
- Dormi no navio, e as refeições eram mínimas. Virei um esqueleto. Quando retornei alguns disseram que não era eu. Mas faziam rodas e rodas para que eu contasse minha viagem. Durante muitos anos, fiquei o pé na estrada, a maioria das vezes só. Ninguém queira ir com o “louco” aventureiro e eu também gostava de andar só.
Desde a época de escoteiro, que “desembestava” com a patrulha, em qualquer lugar que oferecesse alguma aventura. Para dizer a verdade, me metí em tudo que o pais tem de bom para isto. Fui duas vezes a Caparaó, onde existe o pico da Bandeira, uma vez a serra dos Órgãos, varias vezes a Itatiaia, onde ali tive oportunidade de explorar lugares poucos visitadas para a época.
 Viagem por vários países sul-americanos, e em todas as minhas viagens aventureiras, senti a força do escotismo. Aonde chegava era sempre bem recebido. A fraternidade me fez “arranchar” em várias casas de escoteiros e chefes. Com isto aprendi a ser um mochileiro e as manhas para uma boa carona e hospedagem.
 Lembro que fiz uma viagem de três mil quilômetros, só porque vi uma foto de um deserto, e queria conhecê-lo. - Dizia embaixo da foto que ele possuía mais de 200 km de extensão, ficava no Chile, e considerado o mais árido do mundo. Sua temperatura mudava em 24 horas do 0 grau a 40 ou 50º graus isto durante o dia. Chama-se o Deserto de Atacama. Você já deve ter ouvido falar. Sonhava em ir lá. Não comentei com meus pais. Já tinha feito 17 anos e achava que estava preparado para uma viagem como esta.
- Planejei tudo em detalhes, visitei bibliotecas, copiei a mão mapas, e não deixei de anotar sobre a tal figura humana feita na pré-história, o Gigante do Atacama. Tentaria chegar até San Pedro, um pequeno povoado próximo e ali me informaria melhor como conhecê-lo.
- Uma bela manha de inicio de janeiro, “botei” o pé na estrada. Meus pais já sabiam de minha loucura, mas entendiam bem minha sede de riscos e aventuras. Na capital do pais (naquela época) sabia das possibilidades de conseguir um vôo através da força aérea brasileira. Fiquei por lá cinco dias onde consegui um vôo para Santiago.
- Depois vi as dificuldades para chegar até Ser nevada. Tinha ainda uma pequena reserva financeira, escondida na meia, e comia o “sanduba” frio, quando deparei com um Jipe parado, e próximo dois rapazes e uma moça. A placa era de San Pedro. Caramba! Se me dessem uma carona, era meio caminho andado. Simpáticos, mostraram-se amigos e claro, aceitaram meu pedido olhando entre si e sorrindo.
- Olhe, não sabia da fria que estava entrando. Mais tarde soube ser todos bandidos da pior espécie apesar da idade. Eram procurados por todo o Chile. No inicio, muita conversa, risadas, piadas e dois dias depois, me mandaram descer, tirar a roupa (me deixaram de meias e lá estava meu “tutu”). Levaram minhas roupas e minha mochila. Nu, só de meias, no meio do deserto, um sol queimando a pele achei que ia morrer. Mas como o escoteiro nunca desiste afinal BP disse que era só tirar o IM do impossível, e olhe meu amigo passei por poucas e boas, sabia como ninguém como sobreviver. Só não sabia se ia dar certo. Comecei a andar rumo sulsuldoeste, pois tinha uma leve lembrança de ter visto uma pequena cabana no dia anterior.
- Minha pele queimava. Meus pés em brasa. Não havia onde esconder. No final da tarde, com queimaduras por todo o corpo, avistei uma barraca e o jipe dos jovens bandidos. Esperei a noite chegar. Com fome e sede, lá pela madrugada, me aproximei pé ante pé, achei minha mochila, minhas roupas estavam dentro do jipe, e pelado mesmo dei a partida não dando tempo de que eles me pegassem.
- Ouvi muitos tiros. Pedi a Deus que me ajudasse.  Fui ferido de raspão no pescoço. O sangue escorria, mas só parei depois de andar mais de 40 quilômetros. Vi que a gasolina era pouca. Mesmo assim continuei em frente. No jipe tinha uma caixa de primeiros socorros. Ajudou-me muito. No final da tarde daquele dia, ao longe notei uma nuvem de poeira do deserto. Aproximava em minha direção.
- Parei o Jipe e me escondi próximo a algumas pedras. Logo vi que eram duas viaturas policiais se aproximando. Sai do meu esconderijo e me vi cercado de policiais com arma na mão me mandando deitar. Demorou mais de quatro dias para esclarecer tudo. Isto depois de terem localizados os bandidos e os prendido. Disseram-me que tive muita sorte. Eles já tinham assassinados oito turistas, foram os locais.
- Duas semanas depois, chegava a minha cidade, minha casa, meu descanso. Não desanimei de minhas jornadas, de ver novas paisagens, de conhecer outras pessoas, outras cidades e já havia planejado para o ano seguinte uma viagem até a Califórnia, nos Estados Unidos, onde existia um tal de Vale da Morte no Deserto de Monjave era minha próxima parada.
- Vejo que você não olhou para o relógio, não sabe as horas e eu estou com sono. São mais de uma da manhã e se quiser me ouvir mais, volte amanhã, depois do meio dia e vamos conversar mais. Vá com Deus e Sempre Alerta!
Ficou de pé, e encaminhou até a porta nos esperando. Vovó dormitava ao seu lado na poltrona e acordou com a voz do “Velho”. Boquiaberto, com aquelas histórias fantásticas, contadas por um velho escoteiro, não podia de maneira nenhuma perder a continuação de tão bela narrativa.
Agradeci a ele e a Vovó, e parti com meu novo amigo o Chefe Escoteiro. Como tinha o vôo marcado para a noite de domingo, ainda tinha tempo para voltar e ouvir aquele soberbo chefe, e invejei a todos que podiam estar ao seu lado, vendo e aprendendo com quem conhecia sobremaneira o escotismo e tinha participado de atividades aventureiras que jamais sonhei em participar.
"Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons, mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis."
(Bertold Brecht)
O “Velho” Escoteiro e os Aventureiros do Vale da Morte – Fasc. 60
Tudo na vida é relativo. Um fio de cabelo numa cabeça é pouco, mas em um prato de sopa é muito 

Charles Cleto




QUE AS TRADIÇÕES ESCOTEIRAS TENHAM O RESPEITO DE TODOS

Às catorze horas em ponto estava lá. Passei uma noite só pensando em tudo que ouvi.  As histórias do “Velho” eram realmente fantásticas. O Chefe Escoteiro havia chegado primeiro que eu. A porta estava aberta. O “Velho” estava sem uniforme. Um short, uma camisa fechada, chinelos, perfeitamente à vontade.
Comprimentos, logo à vontade nas poltronas sem esquecer a Vovó, que só entrou na sala e saiu pedindo desculpas, pois estava com uma vizinha tentando consertar uma cortina. Notei que o “Velho” estava com o semblante animado, pois como fiquei sabendo mais tarde, ele gostava de contar suas historias e quando tinha um bom ouvinte, se empolgava.
Fiquei pensando como um homem como ele deve ter sido nas lides escoteiras, em cursos, encontros internacionais, nacionais e regionais e que pessoas assim são esquecidas e substituídas por novos, conforme comentários de BP. Começando tudo de novo, e poderiam ir mais além com estes conhecimentos adquiridos.
Mas isto é outra historia. Deixemos o “Velho” continuar, pois eu estava ansioso para conhecer sua vida, suas aventuras, e me sentia orgulhoso em conhecer tal figura, tão rara no escotismo de hoje.
- Não sei se contei a vocês – falava o “Velho” – Mas quando estive em dois Jamborees, em Moisson, França, em 1947 no 6º e no 7º em Bad Ischi. Áustria em 1951 fiz grandes amizades, dentre as quais um francês Pierre de Lá Luna, um americano, Justin Fontelle e Fredrik Restinfeldth. Reuníamos sempre nas horas livres e contávamos nossas aventuras escoteiras em nossos países de origem.
- Não estávamos mais na idade de seniores ou pioneiros e todos nós atuávamos como escotistas em nossos grupos escoteiros. Quem nos despertou a atenção foi o Justin, que falou do seu desejo de conhecer o Vale da Morte, ou Death Valley em inglês, que ficava no Deserto de Mojave, Califórnia. Ele disse que poucos escoteiros americanos se arriscavam e o Boy Scouts of America (BSA) não autorizava nenhum membro a ir até lá.
- Disse-nos que nos anos anteriores, grupos de malucos que se arriscavam a atravessar o Vale da Morte a pé não resistiam ao calor e morriam desintegrados. A temperatura subia acima de 55º. A fauna é rala quando chove logo toda a água acumulada se evapora.
- Mas o mais interessante, completou, eram as pedras que rolam. – Não entendi perguntei. A centena de anos, que pedras de bom tamanho caminham por dois até quatro metros. - Era um chamariz. Quem sabe uma aventura marcante. Ficamos ali naquela noite até tarde falando sobre o tema. Discutimos a possibilidade de uma aventura lá. Depois tudo foi esquecido. Eu não. Quando voltei para casa não tirava da cabeça aquela aventura fantástica e que deveria seria sensacional.
- Dois anos depois recebi uma carta de Justin. Disse-me que ele, Pierre e Fredrik combinaram em julho próximo, de fazer uma exploração no Vale da Morte. Convidavam-me para participar. Não titubeei. Aceitei de pronto e combinamos encontrar na cidade de Ridgecrest, próximo a Lãs Vegas. Escrevendo aqui parece fácil, mas montar uma viagem destas é estupendamente difícil.
- Me preparei com calma. Tinha seis meses de prazo. Meu pai torceu a cara mas me prometeu ajudar. Meu passaporte estava em dia. Arregacei as mangas e lá fui de novo fazer trabalho extra. Trabalhava com meu pai em um escritório de engenharia. Era meu ultimo ano na faculdade e em breve me formaria como Engenheiro civil. Prometi horas extras aos sábados e domingos, fazendo todo o serviço atrasado.
- Em princípios de junho, praticamente tinha a verba necessária. Não vou entrar em detalhes da viagem. Sempre consigo o que quero. Foi uma alegria encontrar todos. Justin estava com um carro "Velho", um Sinca Chambord, azul mas funcionando maravilhosamente. À noite combinamos tudo. Partiríamos no dia seguinte.
- Com a capota arriada, no carro de Justin, nos dirigíamos à pequena cidade de Lone Pine. Chegamos ainda pela manhã. Justin nos convidou para ver o Monte Whitney. Havia ali uma vista excelente. Daí em diante alugamos um jipe para nos levar mais 100 km adentro do vale. Deixamos o carro de Justin aos cuidados de um posto de gasolina local. Passamos por Stovepipe Wels em menos de meia hora vimos que a estrada havia terminado.
- Tínhamos víveres para dez dias e água também. Não levamos muita roupa, só o saco de dormir. Este foi o primeiro erro. Na primeira noite, a temperatura foi rapidamente de 45 graus a cinco. Enrolamos-nos em tudo que tínhamos. Conseguimos uns gravetos e fizemos um pequeno fogo. No dia seguinte marchamos mais 30 quilômetros. Pelo mapa, chegaríamos no dia seguinte onde encontraríamos as tais pedras que rolam.
- O deserto era chocante. Um sol de matar. Sem arvores, sombra só à noite. Todos nós éramos escoteiros e podíamos enfrentar a jornada. No segundo dia, chegamos a um platô, onde acreditamos ser o lar do fenômeno. As pedras da paisagem parecem se mover por conta própria, deixando para trás longas trilhas no chão de argila rachado. Fizemos questão de marcar duas pedras, montamos uma pequena guarda para não perdemos a única chance de ver as pedras rolarem sozinhas.
- Tudo em vão, na hora que o Frances Pierre de Luna devia estar acordado, dormiu. De manhã, vimos que as pedras marcadas tinham percorrido 60 centímetros. Caramba! E perdemos a visão. Resolvemos ficar ali mais um dia. Já era o quarto. Nosso plano era estar de volta no quinto dia. Assim ficaríamos no máximo oito dias no deserto. À noite, Fredrik foi até uma vala, para fazer suas necessidades, não viu e pisou em uma Píton de mais de um metro e meio. Ele o picou acima do joelho. Corremos e matamos a píton. Não tínhamos soro para aquela cobra.
- A única coisa a fazer era um garrote acima do joelho. Peguei meu canivete e mesmo sem desinfetar fiz uma sangria em cima da mordida. Sabia que não era a solução. O garrote tinha que afrouxar a cada três minutos. Mais tempo era gangrena na certa. Foi uma noite incrível. Fredrik era um rapaz forte. Mas a febre abateu sobre ele e tremia sem parar. Acreditei que não passaria daquela noite. Mesmo com bussola não podíamos caminhar à noite. Só pela manha, tentaríamos transportá-lo em uma maca isto se conseguíssemos varas para fazer uma.
- O dia amanheceu. O sol a pino. Justin viu ao longe umas pequenas árvores. Trouxe duas varas e com nossas camisas fizemos uma maca. Não era fácil carregar Fredrik naquele estado. A píton era uma das cobras mais venenosas naquele deserto. Diziam que as pessoas podiam morrer em questão de horas. Naquele dia acho que não andamos mais que 12 quilômetros. Fredrik não apresentava melhoras, mas também não tinha piorado. Respirava com dificuldade. Tínhamos uma pequena maleta de primeiros socorros, mas só dávamos pequenos comprimidos.
- No terceiro dia de retorno, para nossa felicidade vimos um helicóptero sobrevoando próximo a nós. Fizemos sinal e ele nos viu. Desceu a alguns metros a frente. Fredrik foi levado a um hospital. Salvou-se. Disseram que sem o garrote e sangria ele não teria escapado. Não sugerimos tal ação a ninguém. Muitas vezes não dá certo e é desaconselhada pelos médicos. Mas como dizia o velho ditado, quem não tem cão caça com gato. Achávamos que era a única maneira de salvar Fredrik.
- Acompanhamos Fredrik por mais dois dias. Ele se restabeleceu rápido. Após a alta, ficamos mais uma tarde juntos, dissemos adeus, e um até logo e partimos cada um com rumo diferente. Voltei para os meus afazeres. Nunca mais ouvi falar de Fredrik e de Justin. Com Pierre mantive contato várias vezes. Encontramos-nos em outros Jamborees e até em um curso em São Jose da Costa Rica.
Estava dando sete da noite. Não podia mais ficar ali. Meu vôo era às 11 da noite. Pegava no batente no outro dia. Vovó vendo sabendo que ia me retirar logo me convidou a copa. Uma grande mesa com bolos, chocolates quentes, biscoitos de polvilho, sonhos, pão de queijo. Deus do céu! Um manjar dos Deuses.
Prometi voltar. Tinha que voltar. Ficar ao lado de um escotista assim era uma honra, um privilégio. O Chefe Escoteiro me levou até o hotel. Ficamos de nos manter em contato.  Eram histórias e tanto. Verdadeiras epopéias, aventuras sem igual.
No avião não dormi. Fiquei pensando em tudo que o "Velho" me contou. Quem sabe um dia volto lá e ele me recebe novamente. São escoteiros assim que me animam a amar mais e mais o escotismo a cada dia de minha vida. Gostaria mesmo de ficar mais tempo em atividade. Mas profissionalmente não tenho condições. Viajo muito. Mas isto me alegra. Tenho tantos contatos escoteiros por este mundo afora, que meu livro quando for publicado, tenho certeza, será visto por todos do movimento, quiçá até no exterior.
Vou voltar a ver o "Velho", mesmo que não tenha motivos profissionais para isto. Agora ficarei pelo menos uma semana em sua cidade. Ele vai ter que me agüentar se vai!   

"Qualquer um pode zangar-se - isto é fácil. Mas zangar-se com a pessoa certa, na medida certa, na hora certa, pelo motivo certo e da maneira certa - não é fácil." (Aristóteles)

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